Sem licença no poder
Uma semana antes de dar à luz Sophia, em uma cesárea em 27 de fevereiro, a deputada Ana Affonso, 41 anos, ainda buscava assinaturas de apoio para tentar garantir uma licença-maternidade plena.
Embora o regimento da Assembleia do Estado assegure o benefício, a petista descobriu que as minúcias da legislação o concedem pela metade: se quisesse desfrutá-lo, teria que suspender seu mandato. Durante os quatro meses de licença, o cargo ficaria com um suplente, que teria direito a montar seu próprio gabinete, sem compromisso sequer de manter os 15 funcionários que atuam com a deputada.
Decidida a lutar pelo direito integral, a bancada de seu partido apresentou um projeto para alterar o dispositivo. E até conseguiu parecer favorável da mesa diretora. Mas, ao procurar apoio de seus pares para buscar agilidade à votação em plenário, Ana enfrentou resistências maiores do que imaginava. Uns diziam que era preciso estudar melhor a matéria antes de assinar o requerimento. Outros ironizavam:
- Imagina se todas as deputadas ficassem grávidas ao mesmo tempo e não colocassem suplentes.
Foto: Diego Vara
O mais inusitado é que o regimento da casa permite afastamento por até 120 dias para casos de licença-saúde, sem necessidade de suspensão do mandato.
- O deputado que tirar licença-saúde não é substituído, já quem tira licença-maternidade é obrigada a ter o mandato interrompido. É uma incoerência e um prejuízo político, fui eleita para quatro anos critica.
Como a alteração não foi votada antes do nascimento da filha, Ana decidiu abrir mão da licença-maternidade. E garante que vai levar a filha para amamentar no plenário.
- Quem sabe assim eles enxerguem a situação.
Minimizando a questão, alguns colegas a aconselharam a fazer um acordo com o suplente que assumiria o seu mandato no período da licença, para que mantivesse os funcionários de seu gabinete. A deputada não se conforma.
- Não quero que isso seja um favor, algo a ser negociado. É um direito que precisa ser preservado. Se gravidez fosse coisa de homem, isso aí já estaria resolvido no regimento - argumenta.
Mãe de uma adolescente de 17 anos, Ana adiou o quanto pode o sonho da segunda gestação, em nome dos projetos políticos. Até que recebeu um ultimato de seu médico, na fronteira dos 40 anos.
Quando a notícia da gravidez se espalhou, precisou gastar saliva para desfazer boatos difundidos por concorrentes. De olho no eleitorado, espalharam a notícia de que ela não concorreria à reeleição.
- Senti o machismo na pele. Tentavam configurar a gravidez como fragilidade, doença. Mas a gravidez não me diminuiu politicamente. Me senti mais forte, superando preconceitos - sorri a deputada, que trabalhou até a última semana de gestação.
Ao pesquisar a situação da licença-maternidade em outros Estados, a petista descobriu que a Assembleia do Rio Grande do Norte alterou seu regimento interno recentemente para permitir que duas deputadas grávidas pudessem se licenciar sem prejuízos políticos. Por aqui, seu projeto só tem chance de entrar em votação após 11 de março, quando Ana já estará no plenário - com Sophia nos braços.
- Mesmo não sendo beneficiada diretamente, vou lutar pela aprovação, para que nenhuma outra deputada, de qualquer partido que seja, passe por essa situação futuramente - garante.
Direitos violados na faculdade de direito
Especializada em causas trabalhistas, a advogada Karen Muliterno de Andrade, 42 anos, se acostumou a ouvir relatos de clientes gestantes que passam por situações de assédio moral em ambientes de trabalho.
Ao engravidar do segundo filho, se surpreendeu ao descobrir que também era vítima de discriminação.
O choque maior foi constatar que o ambiente onde se deu o desrespeito tinha tudo para ser uma referência de cumprimento da constituição: o departamento da Faculdade de Direito de uma renomada universidade do Rio Grande do Sul.
O caso ocorreu quando Karen atuava como professora substituta na instituição. Meses antes da renovação de seu contrato temporário, em março de 2003, a chefe do departamento comunicou por telefone que, apesar das boas avaliações pedagógicas, ela não seria mantida no cargo por causa da gravidez. Com voz resoluta, a superior garantiu que a decisão havia sido tomada em uma reunião do departamento e tinha caráter definitivo.
Foto: Lauro Alves
Estranhando a deliberação, Karen pediu para ler a ata da reunião. Depois de uma semana de espera, recebeu um documento. A partir do relato de uma secretária do departamento, suspeitou que o papel que lhe foi entregue havia sido forjado pela superior - e que a alegada reunião sequer havia existido.
O caso acabou alvo de uma sindicância interna, que comprovou as irregularidades. A partir da análise do caso pelo colegiado, a professora teve seu contrato de trabalho renovado. Por ampla maioria, o conselho entendeu que a decisão tomada pela chefe do departamento era discriminatória e inconstitucional. Sem respaldo, a chefe acabou entrando com um pedido de aposentadoria logo depois - e Karen fez valer o seu direito.
- É um ambiente velado. Não é uma coisa organizacional, parece uma perseguição pessoal. Trabalhando com advocacia todo dia eu vejo que essa loucura continua ocorrendo, em todos os níveis. Infelizmente acontece até num ambiente universitário, com todos os professores doutores. O pior é que a maioria são mulheres discriminando mulheres - analisa a professora, que prefere não divulgar o nome da universidade para não macular o prestígio da instituição.
Apesar de ter superado o primeiro embate, a advogada, casada com o desembargador do Tribunal do Trabalho da 4ª Região Denis Marcelo de Lima Molarinho, sabe que a vigilância em relação ao tema precisa ser constante. Volta e meia, ouve relatos de professoras universitárias conhecidas que tiveram carga-horária reduzida depois de engravidarem - o que é proibido por lei. Casos de desrespeito também batem à sua porta no serviço de assistência judiciária gratuita que presta no Centro Universitário Metodista do IPA, onde atualmente trabalha como professora e advogada.
- Muita gente pensa que isso não existe, mas essa discriminação não é coisa do século passado. As mulheres não podem se envergonhar nem se abater, precisam lutar pelos seus direitos - defende Karen, que tem três filhos: Giulia, 15 anos, Enrico, 10, e Marcela, dois anos e meio.
Quando a pressão vem de casa
E se o chefe fosse o seu próprio pai, seria mais simples administrar uma gravidez no ambiente de trabalho?
No caso de Mileine Vargas, 37 anos, a resposta é não.
Cobrada pelo pai a dar o exemplo para outras funcionários, enfrentou pressões para encurtar a licença-maternidade e cumprir metas de desempenho na gráfica da família, onde trabalhava como gerente comercial quando engravidou do primeiro e único filho.
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