
Mickey 17 (2025) é o novo filme do diretor de Parasita (2019). Só essa informação já é suficiente para considerar um programa imperdível, talvez obrigatório, ir a uma das salas de cinema onde o título assinado pelo sul-coreano Bong Joon-ho estreou nesta quinta-feira (6).
Para quem não lembra — afinal, quase seis anos separam um lançamento do outro —, Parasita conta a história de uma família de desempregados que enxerga uma chance de ascensão quando o filho ganha a oportunidade de se passar por professor de inglês para a filha adolescente de um casal abastado. Com alternância de gêneros (vai da comédia farsesca ao drama com crítica social, passando pelo thriller policial e flertando com o terror urbano), tornou-se a primeira produção falada não em inglês a conquistar o Oscar de melhor filme. Também recebeu da Academia de Hollywood as estatuetas douradas de melhor direção, roteiro original (coescrito por Joon-ho com Han Jin-wan) e filme internacional. Esses prêmios se juntaram a mais 300, como a Palma de Ouro no Festival de Cannes.
Em Mickey 17, que adapta o livro Mickey7 (2022), de Edward Ashton, Bong Joon-ho volta a retratar a divisão entre classes, como em Expresso do Amanhã (2013), distopia na qual o que restou da humanidade está confinado em um trem — a elite nos vagões da frente, bem assistida, os pobres apinhados nos demais.
Volta a mostrar o que fazemos para sobreviver em um sistema horrível e como as conexões emocionais são fundamentais.
Volta a mesclar gêneros — tem ficção científica, tem comédia, tem ação e tem até romance.
E volta a lidar com criaturas monstruosas e com humor ácido enquanto faz críticas ao capitalismo globalizado, ao imperialismo estadunidense, ao nosso desdém e à nossa arrogância em relação ao ambiente, como em O Hospedeiro (2006) e Okja (2017). Mas os temas da sátira foram atualizados: incluem a corrida pela exploração espacial, os limites éticos na clonagem humana, a ascensão de políticos messiânicos com tendências fascistas.

Como em O Expresso do Amanhã e Okja, o cineasta sul-coreano também volta a trabalhar com um elenco estelar e com diálogos em inglês. Robert Pattinson é o protagonista, e o time de coadjuvantes conta com Mark Ruffalo, indicado ao Oscar de ator coadjuvante por Minhas Mães e Meu Pai (2010), Foxcatcher (2014), Spotlight (2015) e Pobres Criaturas (2023), Toni Collette, concorrente ao Oscar de atriz coadjuvante por O Sexto Sentido (1999) e vencedora do Emmy por O Mundo de Tara (2009-2011), Steven Yeun, que disputou o Oscar de melhor ator por Minari (2020) e ganhou o Emmy por Treta (2023), Naomi Ackie, de Pisque Duas Vezes (2024), e Anamaria Vartolomei, de O Conde de Monte Cristo (2024).
A trama começa em 2054, no fictício e gelado planeta Niflheim, que é habitado por animais que parecem uma cruza de leões-marinhos com centopeias, os Rastejadores. Com fluência narrativa e uma ambientação muito eficiente, em um trabalho azeitado com o diretor de fotografia Darius Khondji, o editor Jinmo Yang e a designer de produção Fiona Crombie, Joon-ho apresenta o protagonista, seu drama e o contexto.

Mickey Barnes, o personagem de Pattinson, é um sujeito que, quando estava na Terra, contraiu um enorme empréstimo para montar com o amigo Timo (Steven Yeun) um negócio de macarons, que acabou falindo. Para fugir do sádico agiota, ele resolve se alistar em uma expedição colonizadora comandada pelo político Kenneth Marshall. Trata-se de uma figura que remete a Donald Trump e Elon Musk, que é apaixonada pela própria imagem e que permite a Mark Ruffalo se divertir à beça, exagerando nas expressões e nos discursos.
Marshall tem a seu lado, ditando seus passos e suas palavras, a esposa, Ylfa (Toni Collette). Bong Joon-ho disse que o vilão não é uma paródia direta de Trump, e sim "um mix de vários políticos e ditadores que vimos ao longo da História", embora entenda por que o público esteja projetando o presidente dos EUA no personagem. Mas o cineasta citou inspirações reais para Ylfa: "Pense no casal Ceausescu da Romênia e no casal Marcos das Filipinas. É sempre muito estranho quando ditadores se movem como casais. Isso os torna ainda mais ridículos e mais aterrorizantes".
Mickey inscreveu-se para ser um dos Descartáveis sem ler direito as cláusulas do contrato. Só depois de embarcado na nave espacial ele descobriu que não tem, por exemplo, benefícios nem sindicato. Como o nome do cargo entrega, o protagonista serve de cobaia para cientistas inescrupulosos descobrirem sintomas da radiação cósmica, efeitos do contato com um gás tóxico de Niflheim ou reações ao consumo de carne artificial. Mickey sofre e sempre morre, mas acaba ressuscitado. Ou melhor, reimpresso — a máquina impressora sinaliza para a comoditização das pessoas, aludindo a outra situação de Parasita: a família rica trata os empregados como produtos descartáveis, nem sentem dor de cabeça ao demitir alguém que trabalha há anos para eles.
As cópias de Mickey são sucessivamente submetidas a novas missões perigosas, protagonizando ciclos de vida e morte que podem durar somente minutos. Implantes cerebrais carregam as suas memórias, ou seja, o personagem lembra de suas dores. Um alívio ele encontra nos braços de Nasha Barridge (papel de Nami Ackie), uma agente de segurança. As coisas se complicam, inclusive no campo romântico, quando, por presunção das autoridades, o Mickey 18 ganha corpo sem que o Mickey 17 esteja de fato extinto — é proibida a existência de múltiplos clones.

O surgimento da 18ª versão de Mickey abre novas frentes de conflito na trama, ora aventurescas, ora tensas, ora cômicas. Lembra que cada trabalhador é uma pessoa, e não um número. E possibilita a Robert Pattinson, outra vez, mostrar como é um dos mais talentosos atores de sua geração — algo que o inglês de 38 anos vem fazendo desde Cosmópolis (2012), Bom Comportamento (2017) e O Farol (2019), para citar três títulos da década passada.
Amparado por um ótimo trabalho de pós-produção nos momentos em que os dois Mickeys contracenam, Pattinson consegue diferenciar bem as personalidades de cada um. O 17, que tem uma voz infantilizada, é mais puro, inocente e inseguro. Agressivo nas atitudes e ferino nas palavras, o 18, pode-se dizer, encarna a revolta contra a exploração da mão-de-obra. É cedo para especulações sobre o Oscar 2026, mas eis um candidato a ser simultaneamente indicado aos prêmios de melhor ator e melhor ator coadjuvante por interpretar duas versões de um personagem no mesmo filme.
É assinante mas ainda não recebe minha carta semanal exclusiva? Clique aqui e se inscreva na newsletter.
Já conhece o canal da coluna no WhatsApp? Clique aqui: gzh.rs/CanalTiciano