
Quando Stanley Kubrick morreu, em 13 de março de 1999, aos 70 anos, vítima de um ataque cardíaco, o saudoso crítico Tuio Becker (1943-2008) escreveu em Zero Hora que o diretor era "a mais perfeita encarnação norte-americana do autor cinematográfico", segundo os princípios definidos pela revista francesa Cahiers du Cinèma.
Tuio afirmou também que, para toda uma geração, a memória da descoberta do cinema se confundia com a trajetória de Kubrick, um cineasta "sempre pronto a provocar os espectadores com as obscuras intenções de suas obras", não importando o gênero delas: a ficção científica, o policial, a guerra, o drama histórico, a aventura épica, o terror, a comédia política e até o suspense erótico.
E lembrou da experiência de assistir a 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968): "Uma só vez não foi suficiente para tentar decifrar o significado das deslumbrantes imagens que batiam na tela do extinto Astor, então com uma projeção de primeira. Foi preciso ver e rever mais vezes o filme para continuar se questionando".

Dito tudo isso, entende-se por que Stanley Kubrick se transformou em uma espécie de obsessão para o crítico francês Michel Ciment (1938-2023), que foi editor da revista Positif. Aliás, cada filme de Kubrick tem potencial para se tornar objeto de culto e originar toda uma mitologia, vide O Iluminado (1980). Nesse mesmo ano de 1980, Ciment publicou um livro sobre o cineasta que foi atualizado em 1987, em 1999, em 2001, em 2004 e em 2011. Lançada originalmente no Brasil em 2013, pela Cosac & Naify, sob o título Conversas com Kubrick, a obra ganhou nova edição no país, agora batizada simplesmente de Kubrick, pela Ubu e com tradução de Eloisa Araújo Ribeiro (352 páginas, R$ 119).
"Acredito que qualquer crítico que tenha resolvido estudar a obra de Stanley Kubrick sentiu os limites do seu próprio discurso", escreve Ciment no prólogo. "Falar de cinema — ou seja, expor para o leitor, em termos conceituais, com palavras, uma série de associações de imagens animadas — e, em si, um desafio. Ele é redobrado diante dos filmes de um autor que sempre os descreveu como 'uma experiência não verbal'. E as muitas recusas de Kubrick em comentar sua criação vêm do desejo de preservar uma parte de mistério e indeterminação."

Assim como o estadunidense Richard Schickel e o britânico Alexander Walker, o francês Ciment foi um dos poucos jornalistas que tinham acesso a Stanley Kubrick. Desde que se mudara para a Inglaterra, em 1961, o diretor nascido em Nova York vivia com sua família, seus gatos e seus cachorros em uma casa afastada da civilização. Lá, podia se concentrar na minuciosa preparação de seus filmes. Sua célebre reclusão deu margem para que um picareta chamado Alan Conway se passasse pelo diretor para aplicar golpes na alta e na baixíssima sociedade londrina (o episódio virou uma comédia dramática, Totalmente Kubrick, lançada em 2005 por Brian W. Cook, ex-assistente do cineasta).
Michel Ciment rememora seu convívio com o gênio neste livro considerado o mais completo compêndio crítico sobre Stanley Kubrick, que produziu relativamente pouco: apenas 13 longas-metragens em quase meio século de carreira, de Medo e Desejo (1953) a De Olhos Bem Fechados (1999). Por coincidência, ele foi 13 vezes indicado ao Oscar. Por Dr. Fantástico (1964), Laranja Mecânica (1971) e Barry Lyndon (1975), competiu nas categorias de melhor filme (Kubrick era também o produtor de seus títulos), melhor direção e melhor roteiro adaptado. Por 2001: Uma Odisseia no Espaço, concorreu aos prêmios de direção, roteiro adaptado e efeitos visuais, e por Nascido para Matar (1987), ao troféu de roteiro adaptado.
Só ganhou uma estatueta dourada, pelos efeitos visuais de 2001. Ou seja, como Ciment aponta, Kubrick divide com os também geniais Charles Chaplin, Josef von Sternberg, Fritz Lang, Orson Welles, Alfred Hitchcock e Robert Altman a singular distinção de nunca ter recebido o Oscar de melhor diretor. (Ao final desta coluna, veja onde assistir aos longas de Kubrick.)

Para o crítico francês, a postura da comunidade hollywoodiana traduzia a "ambivalência do status de Kubrick". A Academia de Hollywood era obrigada a reconhecer as ambições do diretor e o seu sucesso comercial — 2001 custou US$ 10,5 milhões e arrecadou US$ 146 milhões, Laranja Mecânica foi feito com apenas US$ 1,3 milhão e faturou US$ 114 milhões, Nascido para Matar quadruplicou seu orçamento de aproximadamente US$ 30 milhões. Mas a recusa do cineasta de pertencer realmente à "família" e a distância que mantinha dela o condenaram a não ser coroado.
Por outro lado, a autonomia que Stanley Kubrick cultivou desde o início da carreira — em A Morte Passou por Perto (1955), seu segundo longa, ele foi diretor, produtor, roteirista, diretor de fotografia e editor — e a independência que desenvolveu em relação aos grandes estúdios permitiram que o cineasta exercitasse seu notório perfeccionismo (ao Hollywood Reporter, Shelley Duvall, atriz de O Iluminado, reclamou que Kubrick "não estava satisfeito com nada até, pelo menos, o 35º take"), a liberdade e a criatividade. Mas essas características, costumeiramente valorizadas pela crítica, não garantiam recepção calorosa na imprensa — pelo menos não imediatamente.
No prefácio do livro publicado no Brasil, assinado em junho de 2002, o cineasta Martin Scorsese diz que os filmes de Kubrick, a princípio, "foram todos mal compreendidos. Somente depois de cinco ou 10 anos, acabávamos nos dando conta de que 2001: Uma Odisseia no Espaço ou Barry Lyndon ou O Iluminado não eram parecidos com nada do que os havia precedido ou seguido". As reações hostis que o póstumo De Olhos Bem Fechados provocou são "a sina de todos os verdadeiros visionários que não tomam caminhos repisados. Artistas do calibre de Kubrick têm mentes brilhantes e dinâmicas para imaginar o mundo em movimento, para compreender não apenas de onde ele vem, mas para onde vai".
Mais adiante, Michel Ciment recupera a "artilharia pesada do establishment nova-iorquino" despejada contra 2001: "Um filme de uma falta de imaginação monumental", definiu Pauline Kael na Harper's Magazine; "Incrivelmente enfadonho", resumiu Renata Adler no New York Times; "Um desastre", sentenciou Andrew Sarris no Village Voice. Sobre Barry Lyndon, a Variety, de Los Angeles, afirmou: "O que o filme parece nos dizer é que algumas pessoas são canalhas, poucas têm êxito, a vida continua e o sol se levanta sempre a leste. Ora, já sabíamos disso antes de entrar na sala de cinema".
Barry Lyndon é o filme kubrickiano que mais fascina Martin Scorsese — e sua justificativa permite conectar a versão de Kubrick para o romance de William Makepeace Thackeray com a adaptação que Scorsese fez de A Época da Inocência, de Edith Wharton: "Assistimos, um plano cativante atrás do outro, à metamorfose de um homem que passa da mais pura inocência ao refinamento mais glacial, e, para terminar, à amargura mais fúnebre — pois sua sobrevivência depende disso, simplesmente. É um filme terrível, pois toda aquela beleza iluminada por velas é apenas um véu dissimulando a crueldade mais abjeta. Mas uma crueldade verdadeira, daquelas cujos estragos podemos constatar todos os dias na boa sociedade".

Barry Lyndon também é um dos três filmes sobre os quais Kubrick deu longas entrevistas a Ciment, todas reproduzidas no livro _ os outros dois são Laranja Mecânica e O Iluminado. O crítico francês também ouviu muitos colaboradores do cineasta, como o produtor James B. Harris (de O Grande Golpe, Glória Feita de Sangue e Lolita), os roteiristas Michael Herr (Nascido para Matar), Diane Johnson (O Iluminado) e Frederic Raphael (De Olhos Bem Fechados), o diretor de fotografia John Alcott (Laranja Mecânica, Barry Lyndon e O Iluminado), o diretor de arte Ken Adam (Barry Lyndon e Dr. Fantástico), a figurinista Marit Allen (De Olhos Bem Fechados) e os atores Malcolm McDowell (Laranja Mecânica), Marisa Berenson (Barry Lyndon), Jack Nicholson e Shelley Duvall (ambos de O Iluminado).
O livro é ilustrado por muitas fotos de cena e de bastidores e é bastante fragmentado. São 14 seções ao todo, incluindo um belo texto in memoriam, breves depoimentos de Kubrick sobre Nascido para Matar e a filmografia completa e detalhada. Em uma dessas seções, Ciment faz 20 reflexões numeradas, mas ordenadas aleatoriamente. O tema pode ser o gosto de Kubrick pela surpresa e pela mudança; a morbidez, a claustrofobia e a rejeição ao happy end; a incompreensão acerca de Lolita, uma "sátira dos Estados Unidos"; a fotografia que "oscila entre um realismo meticuloso e um expressionismo propositalmente ostensivo", No capítulo seguinte, Kubrick e o Fantástico, o crítico francês publica ensaios sobre 2001 e O Iluminado, mostrando como a estrutura narrativa do segundo filme espelha a do primeiro, ambas "obedecendo ao número 4".

Na conversa sobre Laranja Mecânica, realizada em 1972, o cineasta revelou que pretendia adaptar um romance de Arthur Schnitzler que "opõe as aventuras reais de um marido e as oníricas de sua mulher, e faz a seguinte pergunta: será que há uma diferença importante entre sonhar com uma aventura sexual e realmente ter uma?".
Kubrick estava falando de Breve Romance de Sonho (1926), livro do qual ele adquirira os direitos ainda no final da década de 1960. Demorou 30 anos e foi lançado postumamente, mas De Olhos Bem Fechados é uma prova de como o diretor levava a sério suas obsessões — ainda que não tenha conseguido desenvolver seu projeto sobre Napoleão Bonaparte, que ele chegou a visualizar como uma série de 20 episódios na TV, abarcando toda sua turbulenta trajetória, como conta na entrevista sobre O Iluminado, feita em 1980.
— Al Pacino faria um ótimo Napoleão jovem. Mas não conheço ninguém que se pareça com o velho Napoleão — comenta Kubrick, para emendar com uma tirada humorística que alude ao longo intervalo entre as estreias de suas produções (quatro anos, cinco anos, sete anos, 12 anos). — Temos ainda a possibilidade de filmar os 20 episódios de modo bem lento para que Al Pacino tenha 50 anos no fim da filmagem!

Ainda na entrevista sobre O Iluminado, Ciment pergunta sobre um dos passatempos preferidos de Kubrick na adolescência: o xadrez, que ele continuou jogando entre as filmagens (como com o ator George C. Scott, nos bastidores de Dr. Fantástico) e do qual transportou para o cinema "o rigor matemático dos enredos, uma visão da vida como um trajeto a ser percorrido evitando o erro fatal, o gosto pela especulação abstrata".
— Eu me pergunto se o xadrez, com sua lógica extrema, não se enquadra no tipo de investigação que leva ao desconhecido, que com frequência motiva o fantástico — diz o crítico francês.
— O xadrez — responde Kubrick — lhe ensina, entre outras coisas, a controlar a emoção inicial dada por um movimento, à primeira vista favorável, e se dar um tempo para analisá-lo. Quando você faz um filme, quando começa um filme, tem que tomar a maioria das decisões por intuição, pois o tempo é contado mesmo se, visto de fora, o planejamento de trabalho parece muito lento. Então, se você para, mesmo que por um minuto, para pensar em um problema, pode evitar cometer um erro sobre uma decisão sedutora. No cinema, o xadrez lhe ensina a evitar os erros mais do que a ter ideias. As ideias parecem surgir espontaneamente, mas o verdadeiro problema é ter disciplina para analisá-las. O xadrez exercita também a concentração: ora, é muito difícil refletir em um set de cinema, onde você é solicitado o tempo todo. Há muitas pessoas agitadas a sua volta e cada minuto custa uma fortuna. Se não fosse assim, os diretores não cometeriam tantos erros imediatamente percebidos por cada espectador.
Já na conversa sobre Laranja Mecânica, Ciment afirma que, nos filmes kubrickianos, o Estado é pior do que os cidadãos, mas os cientistas são piores do que o Estado. Vale a pena transcrever a resposta, que continua muito atual em tempos de discussões sobre os avanços da inteligência artificial, o negacionismo sobre as mudanças climáticas e as indagações sobre clonagem humana:
— A ciência é potencialmente bem mais perigosa do que o Estado, pois tem um efeito bem mais duradouro. Não vejo, de modo algum, a ciência como um mal. Ela deve simplesmente ser controlada de modo inteligente pela sociedade. Durante as experiências de Los Alamos para a primeira bomba atômica (em 1945, no final da Segunda Guerra Mundial), um grupo de físicos pensava que haveria uma reação em cadeia a partir da primeira explosão, que destruiria o mundo. Eles achavam, naturalmente, que seria um erro fazer o teste. Mas outro grupo, mais poderoso, que mais tarde mostrou ter razão, declarou que não haveria reação em cadeia e quis fazer a experiência. Que um grupo de cientistas competentes e responsáveis tenha podido pensar que aquilo levaria à destruição do mundo (e, na época, certamente não havia maneira de provar que estavam errados) deveria ter sido ma razão suficiente para não fazer o teste. O fato de não terem sido ouvidos sempre me pareceu um exemplo inquietante da imprudência da ciência quando ela está apaixonadamente interessada por uma ideia sedutora.
Onde ver os 13 filmes de Stanley Kubrick

- Medo e Desejo (Fear and Desire, 1953): Belas Artes à La Carte
- A Morte Passou por Perto (Killer's Kiss, 1955): indisponível no streaming
- O Grande Golpe (The Killing, 1956): para aluguel em Amazon Prime Video
- Glória Feita de Sangue (Paths of Glory, 1957): Looke
- Spartacus (1960): para aluguel em Amazon Prime Video, Apple TV, Google Play e YouTube
- Lolita (1962): para aluguel em Amazon Prime Video e Apple TV
- Dr. Fantástico (Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb, 1964): Telecine e para aluguel em Amazon Prime Video, Apple TV e Google Play
- 2001: Uma Odisseia no Espaço (2001: A Space Odyssey, 1968): Max e para aluguel em Amazon Prime Video, Apple TV e Google Play
- Laranja Mecânica (A Clockwork Orange, 1971): Max e para aluguel em Amazon Prime Video, Apple TV, Google Play e YouTube
- Barry Lyndon (1975): para aluguel em Amazon Prime Video
- O Iluminado (The Shining, 1980): Max e para aluguel em Amazon Prime Video, Apple TV, Google Play e YouTube
- Nascido para Matar (Full Metal Jacket, 1987): para aluguel em Amazon Prime Video, Apple TV, Google Play e YouTube
- De Olhos Bem Fechados (Eyes Wide Shut, 1999): para aluguel em Apple TV, Google Play e YouTube
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