
Há tantos filmes ficcionais e documentais sobre Charle Manson (1934-2017) e sua seita assassina, incluindo as duas adaptações do livro Helter Skelter (em 1976 e em 2012), as duas temporadas da série Mindhunter (2017-2019) e Era uma Vez em... Hollywood (2019), de Quentin Tarantino, que a estreia de mais um título pode passar batida. Ainda mais quando a Netflix deixa de badalar uma informação importante: disponível na plataforma de streaming desde sexta-feira (7), Caos: Os Crimes de Manson (Chaos: The Mansion Murders, 2025) tem direção de Errol Morris, 77 anos, que venceu o Oscar de melhor documentário por Sob a Névoa da Guerra (2003) e o Grande Prêmio do Júri no Festival de Berlim por Procedimento Operacional Padrão (2008).
Seu currículo inclui A Tênue Linha da Morte (1988), considerado um clássico do subgênero que ficou conhecido como true crime (crime real). Nesse documentário, Morris reinvestiga o assassinato de um policial de Dallas em 1976 e acaba provando a inocência do homem que havia sido condenado.
Os crimes da Família Manson chocaram o mundo pela brutalidade. Esse grupo de jovens se estabeleceu em 1967 no Rancho Spahn, na Califórnia, onde consumiam drogas, faziam orgias e idolatravam seu líder, um ex-presidiário (foi cafetão, ladrão, estuprador...) e aspirante a cantor e compositor. No dia 9 de agosto de 1969, a mando de Charles Manson, quatro de seus integrantes — Tex Watson, Susan Atkins (1948-2009), Patricia Krenwinkel e Linda Kasabian (1949-2023) — invadiram a casa de Los Angeles onde a atriz e modelo Sharon Tate, que estava grávida de oito meses e meio, morava com seu marido, o cineasta Roman Polanski. Foram assassinados a tiros e a facadas Tate, Jay Sebring, cabeleireiro das estrelas de Hollywood, Abigail Folger, herdeira de uma marca de café, e o namorado dela, Wojciech Frykowski. Steven Parent, um rapaz que estava só de passagem, visitando o caseiro, também foi morto.

Na noite seguinte, Watson, Krenwinkel e Leslie Van Houten invadiram outra residência e mataram com dezenas de golpes de faca o casal Leno LaBianca, dono de supermercados, e Rosemary LaBianca, sócia de uma boutique. Nas cenas dos dois crimes, os membros da Família Manson escreveram com sangue das vítimas a palavra "Pigs" (em inglês, porcos). Em 1971, Manson e seus comparsas foram condenados à morte, sentença alterada para a prisão perpétua depois que o Estado da Califórnia aboliu a pena capital.
Todos esses fatos já foram fartamente documentados e reconstituídos. O que Errol Morris discute em Caos: Os Crimes de Manson é a motivação dos assassinatos.
(ALERTA: HAVERÁ SPOILERS para quem não assistiu ao documentário.)
Para começo de conversa, talvez Sharon Tate nunca tivesse sido o alvo. Meses antes do ataque sanguinário, a casa onde ela morreu tinha outro morador, Terry Melcher (1942-2004), filho da atriz Doris Day e produtor musical — entre seus trabalhos, estão os primeiros dois discos da banda The Byrds. Especula-se que Manson queria se vingar de Melcher por ele ter desistido de produzir um disco seu.
O produtor havia conhecido Charles Manson através de Dennis Wilson (1944-1983), um dos integrantes dos Beach Boys. A banda californiana chegou a gravar uma música de Manson, sem creditar a autoria: Cease to Exist, rebatizada de Never Learn Not to Love no lado B do single Bluebirds Over the Mountain, de dezembro de 1968. Os versos pareciam ilustrar a espécie de lavagem cerebral feita por Manson e o cotidiano no Rancho Spahn: "Linda garota, linda, linda garota / Deixe de existir / Apenas venha e diga que me ama / Desista do seu mundo (...) A submissão é um presente / Vá em frente, dê para o seu irmão".

O documentário se baseia — mas não endossa — no livro Chaos: Charles Manson, the CIA, and the Secret History of the Sixties, publicado em 2019 pelo jornalista Tom O'Neill, que contesta a tese do promotor do Caso Tate-LaBianca, Vincent Bugliosi (1934-2015). O'Neill é o principal entrevistado de Morris, que também conversou com Stephen Kay, outro promotor do caso, e Bobby Beausoleil, um ex-integrante da gangue que segue cumprindo prisão perpétua pelo assassinato do músico Gary Hinman, em 27 de julho de 1969. O filme inclui cenas de bastidores do julgamento, filmes caseiros estrelados por Sharon Tate e imagens de depoimentos de Manson, Atkins, Krenwinkel e Van Houten.
Segundo Bugliosi, o objetivo dos assassinatos era deflagrar uma guerra racial nos Estados Unidos. Sua teoria foi batizada de Helter Skelter, nome de uma canção do chamado White Album (1968), dos Beatles, disco cujas letras conteriam mensagens subliminares sobre a iminência de um conflito entre brancos e negros. Os seguidores de Manson teriam procurado atribuir a culpa de seus crimes à organização Panteras Negras — daí a pata felina pintada a sangue na casa de Gary Hinman, daí escreverem "Pigs", uma gíria para a polícia. Vale lembrar que Manson, na prisão, tatuou uma suástica na testa.
Tom O'Neill acha que o promotor só montou essa tese bombástica para alavancar as vendas do livro que estava escrevendo enquanto o caso ainda estava sendo julgado, Helter Skelter (1974). Mas o jornalista apresenta uma teoria igualmente bombástica.

Ele questiona o histórico de leniência das autoridades para com Charles Manson, que várias vezes teria violado sua liberdade condicional, sem ser preso. O'Neill também sugere haver uma conexão do líder do culto homicida com o psiquiatra Louis Jolyon "Jolly" West (1924-1999). Na década de 1960, esse psiquiatra esteve envolvido com um projeto de controle mental da CIA, a agência estadunidense de inteligência, o MKUltra.
No contexto da Guerra Fria entre EUA e URSS, a ideia era, por meio de técnicas eletroconvulsivas e de drogas como o LSD, fazer lavagem cerebral, apagando memórias ou implantando lembranças falsas. Em última instância, o projeto poderia, ao reprogramar mentes, desenvolver assassinos sem remorso — como visto no filme de ficção Sob o Domínio do Mal (1962), versão de John Frankenheimer para o romance homônimo lançado em 1959 por Richard Condon, que tem cenas reproduzidas no documentário da Netflix.
Jolly West tinha conexão com outro caso rumoroso na história dos EUA: o assassinato do presidente John F. Kennedy, em 1963. Foi o psiquiatra quem atendeu e declarou "psicótico e delirante" Jack Ruby (1911-1967), o assassino de Lee Harvey Oswald, suposto matador de JFK.
Tom O'Neill chega a elaborar uma intrigante teoria conspiratória: a de que os assassinatos consumados pela Família Manson serviram aos interesses do governo federal, dos políticos de direita e de setores conservadores da sociedade. Conforme ele diz a Errol Morris, passaram a ideia de que "essa garotada saiu de casa e foi corrompida pela liberdade do movimento dos anos 1960 e viraram monstros. Ou seja, não deixem seus filhos usarem drogas, entrarem nas comunidades, marcharem contra a guerra, porque todos vão se transformar nesses assassinos malucos". Enquanto O'Neill diz isso, o documentário exibe reproduções de manchetes de jornal como "Prisão de Manson lança sombras sobre os hippies".

O jornalista entrevistado por Errol Morris diz que não conseguiu provar que Charles Manson e o psiquiatra se conheciam, mas encontra paralelos suspeitos entre o MKUltra e a seita assassina. Como Manson convenceu seus discípulos a cometerem aqueles crimes bárbaros? Como as perpetradoras podiam descrevê-los em detalhes com tanta frieza? Por que elas idolatravam tanto Charles, a ponto de repetirem suas transformações visuais durante o processo judicial? Como, mesmo anos depois do caso, Susan Atkins dizia que ainda sentia Manson "dentro de sua cabeça"?
Um dos contrapontos trazidos por Caos: Os Crimes de Manson vem do próprio Charles Manson:
— Como posso controlar sua mente? Posso te transformar num robô? Influenciaram Leslie Van Houten muito antes de mim. A mãe foi a primeira. O pai. A escola. A TV, os filmes. E aí você chega e diz: "Você a influenciou". Claro que eu influenciei. Influencio todos que eu conheço. Mas não significa que eu a orientei a ser quem ela era. Eu não botei fogo na sua casa. Não me culpe pelos seus filhos. Você criou seus filhos, você programou seus filhos.

Bobby Beausoleil também minimiza o mito:
— O problema dessa história é que as pessoas gostam muito das próprias fantasias. As pessoas amam conspirações. Elas não querem saber que a história é simples, que Charlie não era um gênio. Em seus delírios paranoicos, em seus cálculos equivocados, foi só erro atrás de erro.
Sua declaração contribui bastante para a ideia de Errol Morris ao realizar Caos: Os Crimes de Manson. Seu objetivo não é oferecer uma resposta fácil ou defender uma única teoria: o que o cineasta faz é discutir as razões da obsessão por Charles Manson (tanto a de seus seguidores quanto a do público) e refletir nossa vontade — ou até nossa urgência — de construir histórias e encontrar motivos para o perturbador, o horrendo, o inexplicável.
— Acho que todos nós temos essa ideia de que se você trabalhar duro o suficiente e por tempo suficiente, você vai desvendar o caso — disse Errol Morris em entrevista a Sam Adams na revista online Slate. — Talvez você simplesmente não tenha olhado no armário certo ou debaixo da cama certa ou falado com as pessoas certas, mas uma solução estará à mão, porque estamos falando sobre o mundo em que coisas reais acontecem e deixam evidências. Mas eu já percebi há muito tempo que as evidências podem ser manipuladas, podem ser perdidas, podem ser alteradas. E se é isso que está acontecendo, você pode realmente voltar ao que realmente aconteceu? Há uma passagem (no livro) Helter Skelter que compara uma investigação a um quebra-cabeça. A ideia é que de alguma forma vamos encontrar as peças que faltam, e vamos juntá-las todas e uma imagem vai surgir. Mas até Bugliosi nos diz que as pessoas que estão intimamente familiarizadas com investigações sabem que isso nem sempre é verdade. Às vezes as pessoas introduziram peças falsas no quebra-cabeça. Às vezes o quebra-cabeça se mistura com um quebra-cabeça diferente. Às vezes as peças simplesmente não se encaixam corretamente e nunca se encaixarão.
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