
Disponível desde sábado (22) no menu da Netflix, A Vida Invisível (2019) é um dos raros filmes que renderam prêmios a Fernanda Montenegro, atriz que atualmente pode ser vista no cinema em dois títulos baseados em histórias reais: Vitória (2025) e o oscarizado Ainda Estou Aqui (2024).
Por A Vida Invisível, Montenegro recebeu da Academia Brasileira de Cinema o Grande Otelo de melhor atriz coadjuvante. A lista de atuações cinematográficas premiadas inclui A Falecida (1965), que rendeu o Candango de melhor atriz no Festival de Brasília; Central do Brasil (1998), pelo qual conquistou o Urso de Prata no Festival de Berlim e concorreu ao Oscar e ao Globo de Ouro; e O Outro Lado da Rua (2004), pelo qual ganhou o Grande Otelo e o troféu do Festival de Recife de melhor atriz.
O filme é dirigido por um dos cineastas brasileiros mais prestigiados no Exterior, o cearense Karim Aïmouz. Com A Vida Invisível, ele ganhou a mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes, onde competiu outras quatro vezes, com Madame Satã, O Abismo Prateado, O Jogo da Rainha e Motel Destino. Participou duas vezes do Festival de Veneza (O Céu de Suely e Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo, em parceria com Marcelo Gomes) e também já foi selecionado para o de Berlim (Aeroporto Central).

A Vida Invisível é um filmaço que nos pega tanto pela emoção desbragada quanto pelas sutilezas. Há um diálogo na trama que parece corriqueiro, conversa de corredor entre duas vizinhas de um cortiço no Rio de Janeiro, e a cena não dura mais tempo do que as personagens precisam para dizer suas falas. Mas aquelas três palavrinhas pesam profundamente, ficam reverberando na cabeça do espectador.
Recém-chegada do hospital, onde dera à luz, uma mulher é questionada por outra, que quer saber se o bebê é menino ou menina. Diante da resposta, quem perguntou comenta:
— Sorte a dele.
Sorte a dele. Por consequência, azar o delas. Nessa brevíssima passagem de A Vida Invisível, Karim Aïnouz sintetiza a história que conta e o seu contexto social, a ficção e a realidade. Nascer mulher é correr riscos. Seja no Brasil dos anos 1950, época em que se passa a maior parte do filme, seja no país de hoje, onde, em 2024, a cada 17 horas uma mulher foi vítima de feminicídio em um dos nove Estados monitorados no estudo Elas Vivem, da Rede de Observatórios de Segurança (Amazonas, Bahia, Ceará, Maranhão, Pará, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo).
Onde 37,5% das mulheres — 27 milhões de pessoas — sofreram violência física, sexual ou psicológica cometida por um parceiro íntimo em 2024, segundo a quinta edição da pesquisa Visível e Invisível: A Vitimização de Mulheres no Brasil, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do Instituto Datafolha.
Onde, de acordo com dados do IBGE referentes a 2022, as trabalhadoras ganham em média 17% a menos do que os homens.
Onde, apesar de serem a maioria na população (51,1%), as mulheres estão sub-representadas na política — apenas 13% dos municípios são comandados por uma prefeita, somente 18% do Congresso é feminino, e os 26 Estados e o Distrito Federal têm só duas governadoras.

As brasileiras são agredidas, são desrespeitadas, são silenciadas. Mais de 60 anos atrás, as protagonistas de A Vida Invisível já enfrentavam os mesmos problemas. Interpretada por Carol Duarte (vista recentemente em Malu), a jovem Eurídice é uma pianista talentosa e reprimida. Suas aventuras sexuais são as da irmã, Guida (papel de Júlia Stockler), que lhe conta sobre os avanços íntimos de um marinheiro grego.
Uma protege a outra, e só se separam quando Eurídice, tocando seu piano, acoberta as escapadas noturnas de Guida. Até que um dia a separação se agiganta. Antes cúmplices, as irmãs tornam-se invisíveis uma para a outra.

Sozinhas, cada uma em seu canto, Eurídice e Guida terão de lidar com temas e situações que continuam atuais. Uma sociedade patriarcal, o machismo, a intolerância para com um comportamento libertário, a anulação ou a desconsideração pelas vontades e pelos sonhos femininos, a opressão cotidiana. Do lado de cá da tela, nutrimos a esperança por um reencontro, nos esfacelamos nos desencontros, reconhecemos dramas e desafios de nossas avós, mães, irmãs — tomara que não das nossas filhas.
Usar o passado para refletir o presente é um dos trunfos desta adaptação do romance A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, escrito pela pernambucana Martha Batalha. Entre outros tantos, estão a química entre as atrizes Carol Duarte e Júlia Stockler (construída graças a um imersivo e isolante trabalho de preparação), a belíssima fotografia da francesa Hélène Louvart (premiada no Festival de Veneza) e a poderosa trilha sonora do alemão Benedikt Schiefer.
Vale destacar a opção do diretor Karim Aïnouz por uma estrutura dramática mais clássica. Ele fez "um melodrama tropical", expressão empregada inclusive nos créditos de abertura, por acreditar, como disse em entrevista ao jornalista Daniel Feix, que "os filmes de gênero têm o poder de ser consistentes e promover reflexões a partir das sensações, e não de eventuais invenções da linguagem" e que "é possível manter a assinatura do autor dialogando com um público mais amplo".
Aïnouz lança nos minutos finais de A Vida Invisível uma carta decisiva para arrebatar corações: a participação especial de Fernanda Montenegro, em um papel que faz ponte entre Central do Brasil e Ainda Estou Aqui. Como no filme sobre Eunice Paiva, ela mal precisa das palavras para nos comover — vide seu silêncio carregado de emoção em uma cena epifânica, capaz de fazer uma sala de cinema inteira desabar no choro, como eu presenciei em 2019. Sorte a nossa termos uma atriz assim.
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