
Como filme, Vitória (2025), que estreou nos cinemas na quinta-feira (13), é bastante protocolar. O diretor Andrucha Waddington aposta tudo na força da história real que está contando — aliás, ele investe demais em diálogos descritivos — e no talento da sua protagonista, Fernanda Montenegro. Não deixa de ser uma postura respeitosa, mas a discrição na forma narrativa e no estilo cinematográfico cobra um preço, pois tanto a história quanto o talento já são muito familiares para o espectador. Terminada a sessão, fica a sensação de que a obra ficou aquém do seu potencial.
O impacto quase inexiste, até por que a violência do tráfico de drogas e a corrupção policial denunciadas pela octogenária massoterapeuta Joana Zeferina da Paz (1925-2023) no Rio de Janeiro de 2005 se tornaram, infelizmente, triviais. A tentativa de criar tensão esbarra no conhecimento prévio da trama, que virou assunto de manchetes internacionais e que foi amplamente relembrada por causa da produção e do lançamento do longa-metragem.
Resta admirar a também já conhecidíssima capacidade de Montenegro, hoje com 95 anos, emocionar com apenas um olhar mais demorado, apenas um gesto ligeiro, apenas uma inflexão na voz. Às vezes, ela nem precisa de palavras para provocar um terremoto no nosso coração, como vimos em A Vida Invisível (2019) e no oscarizado Ainda Estou Aqui (2024).
Marido de Fernanda Torres e, portanto, genro de Fernanda Montenegro, Andrucha Waddington dirigiu as duas atrizes em Casa de Areia (2005). Seu currículo inclui Eu Tu Eles (2000), vencedor do Festival de Havana, o documentário Viva São João! (2002), ganhador de quatro troféus no Festival de Recife, a comédia Os Penetras (2012), que levou 2,5 milhões de espectadores aos cinemas, e dezenas de episódios da série médica Sob Pressão (2017-2022).
A cinebiografia de Joana da Paz não era um projeto seu. Andrucha assumiu a direção depois que Breno Silveira, diretor de 2 Filhos de Francisco (2005) e Gonzaga: De Pai pra Filho (2012) e criador da série Dom (2021-2024), morreu, em 14 de maio de 2022, aos 58 anos. Ele foi vítima de um infarto durante as primeiras filmagens de Vitória — que então se chamava Dona Vitória. Viúva de Breno e roteirista do filme, Paula Fiúza conclamou Andrucha a dar sequência ao trabalho.
— Paramos a produção por quatro meses até a gente se recompor emocionalmente — contou Andrucha em entrevista ao gshow. — Voltamos a filmar em outubro de 2022, terminamos em dezembro, e a dona Joana partiu em fevereiro de 2023.
Essa cronologia é importante no contexto de um ponto polêmico do filme: Joana da Paz era uma mulher negra.

Nascida em Alagoas, Joana morava no bairro de Copacabana, no Rio. Da janela de seu apartamento, indignava-se com a rotina de crimes e contravenções na Ladeira dos Tabajaras. Um dia, resolveu gravar com um câmera situações como assassinatos à queima-roupa, venda de drogas e corrupção de agentes da lei. As fitas VHS que reuniu deram origem a uma reportagem do jornalista Fábio Gusmão, do Extra, e a uma investigação policial que resultou em mais de 30 prisões.
Joana entrou para o programa de proteção a testemunhas, vivendo os seus últimos 17 anos no anonimato e escondida. Só após sua morte, em decorrência de um acidente vascular cerebral (AVC), sua verdadeira identidade foi revelada por Gusmão, que lançou um livro no qual o filme se baseia e que em 2024 ganhou uma nova edição, intitulada Dona Vitória Joana da Paz (editora Planeta).

Como Vitória começou a ser produzido ainda em 2022, houve uma série de precauções para manter preservada essa identidade. No filme, a personagem se chama Dona Nina, e a Ladeira dos Tabajaras virou Ladeira da Misericórdia.
Sem saber que Joana era negra, Breno Silveira não viu problema em escalar uma atriz branca para interpretá-la — não houve um "branqueamento" consciente. E, em nome da diversidade racial, o cineasta trocou a etnia do jornalista, rebatizado de Flávio Godoy na ficção e encarnado por um ator negro, Alan Rocha.

É compreensível a decisão de chamar um patrimônio nacional, como Fernanda Montenegro, para viver uma heroína nacional — e, segundo Fábio Gusmão, Joana da Paz ficou orgulhosa ao saber que seria interpretada pela atriz indicada ao Oscar por Central do Brasil (1998).
Mas também é compreensível que essa escolha tenha gerado um debate sobre racismo estrutural e críticas quanto à falta de oportunidades para atrizes negras. Se mulheres negras são o maior grupo populacional do Brasil (mais de 60 milhões entre pretas e pardas, 28,5% do total de habitantes do país), por que, ao pensar em uma heroína nacional, a imagem que vem à cabeça tem de ser a de uma mulher branca?
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