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A tensão mundial por causa das guerras entre Rússia e Ucrânia, iniciada em 24 de fevereiro de 2022, e entre Israel e o Hamas, deflagrada em 7 de outubro de 2023, e a radicalização da polarização partidária nos Estados Unidos, que provocou episódios como a invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, por apoiadores do então presidente Donald Trump para contestar a vitória de Joe Biden nas eleições, engrossaram o caldo cultural onde são gestadas séries sobre atentados terroristas, ameaças nucleares, agentes secretos e conspirações políticas.
A Slow Horses e The Old Man, que estrearam em 2022, juntaram-se recentemente produções como O Agente Noturno (2023-), Operação: Lioness (2023), A Agência (2024), Black Doves (2024), O Dia do Chacal (2024) e Paradise (2025). A mais nova obra da lista é Dia Zero (Zero Day, 2025), que teve seus seis episódios lançados nesta quinta-feira (20) pela Netflix.
Protagonizada por Robert De Niro, 81 anos, Dia Zero foi criada por Eric Newman, showrunner da série Narcos (2015-2017), Noah Oppenheim, ex-presidente da divisão de Jornalismo da rede de TV NBC e vencedor do prêmio de melhor roteiro no Festival de Veneza pelo filme Jackie (2016), de Pablo Larraín, e Michael Schmidt, jornalista do New York Times especializado em segurança nacional. Entre suas principais reportagens, está aquela que revelou a existência de um servidor de e-mail privado usado por Hillary Clinton quando ela era secretária de Estado. Schmidt também divulgou a ordem de Trump, em seu primeiro mandato, para que seu genro, Jared Kushner, tivesse acesso a informações sigilosas.
Os seis capítulos têm direção de Lesli Linka Glatter, que ganhou duas vezes o troféu do Sindicato dos Diretores dos EUA e concorreu sete vezes ao Emmy por um seriado aparentado, Homeland (2011-2020). O ponto de partida — o dia zero do título — é um devastador ataque cibernético que causou o caos nos EUA e milhares de mortes, por causa da pane nos sistemas de transporte e nos hospitais. Todos os celulares receberam a mesma mensagem assustadora: "Isso vai acontecer de novo". Quem está por trás: os russos? Os chineses? Extremistas do próprio país? Hackers anarquistas?
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Formada para investigar o caso e evitar uma nova tragédia, a Comissão do Dia Zero terá de fazer a reflexão que aflige os EUA desde o 11 de Setembro: situações extremas autorizam medidas extremas? No pacote, estão invasão de privacidade, prisões arbitrárias e tortura. E há uma outra questão levantada pela série, essa muito contemporânea: na era das fake news, da desinformação e das manipulações via inteligência artificial, como encontramos a verdade? E de que adiantam os avanços tecnológicos na vigilância se as evidências podem ser digitalmente distorcidas ou fabricadas?
Se a trama aposta em suspense e atualidade, o elenco é numeroso e estelar _ ainda que ninguém chegue a brilhar ou roubar a cena. Robert De Niro, que ganhou o Oscar de coadjuvante por O Poderoso Chefão: Parte II e o de melhor ator por Touro Indomável, trabalha pela primeira vez em uma série estadunidense (em 2023, ele foi coadjuvante na comédia argentina O Faz Nada). Seu personagem é um ex-presidente dos EUA, George Mullen, com uma caracterização — cabelos brancos curtos, óculos de armação preta e algumas expressões rabugentas — que remete a Carl Fredericksen, protagonista da animação da Pixar Up: Altas Aventuras (2009). Mullen é convocado para liderar a Comissão do Dia Zero por conta da sua experiência, da sua honestidade e da sua popularidade. Contudo, ao final do primeiro episódio sua capacidade para a missão será posta em xeque — pelo menos aos olhos do espectador.
Com três indicações ao Oscar (por Nixon, As Bruxas de Salem e Conspiração), Joan Allen encarna a esposa de George, Sheila. Candidata ao cargo de juíza federal, ela tem de pesar as consequências do retorno do marido à cena pública.
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Lizzy Caplan, que disputou o Emmy por Masters of Sex e A Nova Vida de Toby, faz a filha do casal, Alexandra, hoje uma congressista que quer se destacar por seus próprios méritos, sem viver à sombra do pai — o que pode significar confrontá-lo.
Jesse Plemons, que competiu no Oscar de coadjuvante por Ataque dos Cães e esteve presente em sete concorrentes ao Oscar de melhor filme entre 2016 e 2024, vive Roger Carlson, assessor de Mullen que vê na crise uma oportunidade de resgatar sua relevância política. Mas ele guarda um segredo que pode jogar tudo por terra.
Indicada ao Oscar de melhor atriz por Tina e ao de atriz coadjuvante por Pantera Negra: Wakanda para Sempre, Angela Bassett interpreta a atual mandatária da Casa Branca, Evelyn Mitchell, sequiosa por dar uma resposta à população.
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Matthew Modine, que retomou os holofotes por causa do seriado Stranger Things, aqui aparece na pele de Richard Dreyer, o presidente da Câmara. Habilidoso no xadrez político, é um possível adversário de Mitchell nas próximas eleições presidenciais.
Dona de cinco indicações ao Emmy (pelas séries Friday Night Lights, American Horror Story, Nashville e The White Lotus), Connie Britton dá vida a Valerie Whitesell, ex-chefe de gabinete de Mitchell.
Bill Camp, que concorreu ao Emmy de ator coadjuvante por The Night Of (e deveria ter concorrido por O Gambito da Rainha), faz o diretor da CIA, Jeremy Lasch.
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Conhecido como o Matthew Crawley de Downton Abbey, Dan Stevens está no papel de Evan Green, jornalista famoso pela oposição inflamada ao governo e por caçar cliques, nem que para isso recorra a teorias da conspiração.
Gaby Hoffmann, duas vezes indicada ao Emmy de atriz coadjuvante por Transparent, faz outra personagem decalcada de tipos reais: Monica Kidder, CEO da Panoply, uma grande empresa de tecnologia e redes sociais.
Há ainda Clark Gregg, o agente Coulson nas produções da Marvel, que aqui encarna Robert Lyndon, mestre da manipulação política, da corrupção e da exploração econômica em momentos dramáticos ou até trágicos, e McKinley Belcher III, das minisséries A Cidade É Nossa e Eric, como Carl Otieno, principal investigador da Comissão do Dia Zero.
Esses personagens vão lidar com ameaças à segurança nacional, interesses escusos, desconfiança e, claro, reviravoltas. Vale avisar que as cenas de ação são mais escassas do que o enredo sugere — aliás, a direção de fotografia e a edição são qualquer coisa.
E convém não esperar tanta sujeira, tanta malvadeza e tanto cinismo quanto em House of Cards (2013-2018), que também examinava os bastidores políticos dos EUA e as relações com a imprensa e o empresariado. Embora haja atitudes desabonadoras, a maioria dos personagens pode ser enquadrada na categoria dos mocinhos. Há discursos de exaltação ao patriotismo e aos ideais e valores que formam a chamada América — que, na ficção de Dia Zero, é um país dividido como o do mundo real, mas olhado por um ponto de vista o mais equilibrado possível. Mullen dispara críticas tanto à esquerda quanto à direita, e a série jamais informa se alguém é filiado ao Partido Democrata ou ao Republicano. Por ser medrosa ou por não ser boba — afinal, precisa agradar a gregos e troianos —, a Netflix adota a postura de isentona.
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