Um ataque terrorista que traumatizou os Estados Unidos e abalou o mundo e um curta-metragem que custou US$ 30 mil e tem apenas oito minutos foram fundamentais para o surgimento da mais louvada e bem-sucedida fase do Batman nos cinemas.
Os efeitos do 11 de Setembro, em 2001, ainda se faziam sentir na produção de Hollywood quando o cineasta inglês Christopher Nolan começou a gestar Batman Begins (2005), filme que abriu a trilogia bilionária protagonizada por Christian Bale e que a RBS TV exibe neste domingo (8), às 23h55min, no Domingo Maior. Esse primeiro título arrecadou US$ 373,6 milhões; O Cavaleiro das Trevas (2008), US$ 1 bilhão; e O Cavaleiro das Trevas Ressurge (2012), US$ 1,1 bilhão.
Havia uma tendência à sobriedade, em consonância com um "imaginário cinza de fim de mundo" — como definiu o crítico Marcelo Hessel, do site Omelete — após os atentados ao World Trade Center, em Nova York, e ao Pentágono, em Washington. Isso ajuda a explicar o êxito da franquia Jason Bourne, que teve início em 2002 e mostrou um 007 desglamorizado, vivendo aventuras marcadas pelo realismo cru — que acabou sendo adotado nos filmes do próprio James Bond, a partir de Cassino Royale (2006) —, pela globalização do terrorismo e pela controversa política de segurança e vigilância adotada pelos Estados Unidos.
A cultura do medo implementada pelo governo de George W. Bush também pesou para o sucesso do seriado 24 Horas, lançado em 2001: o agente Jack Bauer personificou o sentimento da nação, encarando muçulmanos, russos, chineses, africanos e até mexicanos como inimigos e não titubeando em usar da violência e mesmo da tortura para desbaratar uma ameaça ao país. O fato é que os EUA precisavam de um herói, e um herói que fosse plausível e que lidasse com ameaças reais.
Entrementes, em 2003 o técnico em efeitos visuais Sandy Collora escreveu e dirigiu um curta chamado Batman: Dead End, que ele apresentou na San Diego Comic-Con, um dos eventos mais tradicionais da cultura pop. Pupilo do oscarizado artista Stan Winston, Collora vestiu o fisiculturista Clark Bartram com um uniforme dos velhos tempos, sem a elipse amarela sobre o símbolo do morcego, e o levou para um beco sem saída, onde, sob chuva, primeiro tenta capturar o Coringa; depois, trava uma briga brutal com os monstros das franquias Alien e Predador.
Esses componentes da ficção científica espacial não tinham muito a ver com os sonhos dos fãs mais devotos, mas, conforme escreveu Glen Weldon no livro A Cruzada Mascarada (2017), a atenção de Sandy Collora a elementos visuais icônicos do Cavaleiro das Trevas estimulou a sede de ver o herói de volta à ação nas telas do cinema, despido das distrações barrocas impostas por Tim Burton e Joel Schumacher entre 1989 e 1997.
Batman Begins funde o contexto da época com os desejos da comunidade nerd. Por um lado, a trama escrita por Christopher Nolan com o roteirista David S. Goyer (que havia trabalhado na trilogia Blade, o caçador de vampiros da Marvel) tem como tema principal o poder e o propósito do medo — não à toa, um dos vilões é o Espantalho, que desenvolveu um gás capaz de fazer as vítimas alucinarem sobre seus piores temores. Por outro, o roteiro se estrutura ou pelo menos foi influenciado a partir de histórias em quadrinhos que estão entre as favoritas dos leitores de Batman. Entre elas, destacam-se Ano Um (1987), de Frank Miller e David Mazzucchelli, O Homem que Cai (1989), de Denny O'Neil e Dick Giordano, e O Longo Dia das Bruxas (1996-1997), de Jeph Loeb e Tim Sale, além da fase de O'Neil e Neal Adams no começo da década de 1970.
Nolan também extirpa as cores, as piadas (mas não necessariamente o senso de humor), Robin e os elementos bizarros ou cartunescos. Seu filme será o mais realista possível, permitindo-se a violência, a dor, a amargura. O diretor estava na contramão de Joel Schumacher: queria tirar o "comic" de "comic book". Ou até mais do que isso, como contou no livro The Art and Making of The Dark Knight Trilogy (2012, editora Abrams), de Jody Duncan Jesser e Janine Pourroy: "Desde o início, meu interesse foi pegar uma história de super-herói, mas fundamentá-la na realidade, nunca olhando para ela como um filme de quadrinhos, mas sim como qualquer outro filme de ação/aventura. Eu estava interessado em remover a moldura das histórias em quadrinhos, a realidade bidimensional de como uma HQ se parece. Seria um Batman mais sombrio e humano".
O primeiro passo era se preocupar em responder a uma série de perguntas: por que a roupa de morcego? Por que a obsessão pela justiça? Como ele treinou? Como consegue seu equipamento? Por que ele não mata? Como seria um Batmóvel na vida real? Quem é Bruce Wayne?
Ao pensar nas respostas, Christopher Nolan e David S. Goyer lembraram de outro trauma nacional: o assassinato do presidente John F. Kennedy, em Dallas, em 1963. A imagem que capturou a imaginação de ambos, Goyer revela em The Art and Making of the Dark Knight Trilogy, foi a da famosa fotografia de John F. Kennedy Jr, então com três anos, saudando o caixão de seu pai: "Essa foto, que mostrava essa criança tentando parecer estoica e corajosa, desencadeou algo para nós".
Eis um dos pontos essenciais do fascínio despertado por Batman. Sim, Bruce Wayne tem um superpoder — ele é bilionário, seu dinheiro é como magia, que faz possível desenvolver o corpo, a mente e uma coleção de veículos, tecnologias e acessórios para combater o crime. Mas Bruce Wayne não é um alienígena que, na Terra, tem superforça, supervelocidade, invulnerabilidade, visão de raio X, microscópica e infravermelho, entre outros tantos poderes. Não é um jovem que foi picado por uma aranha radioativa e, assim, adquiriu força e agilidade sobre-humanas, escala paredes e anda pelo teto, lança teias e tem um incrível sentido de alerta. Não é um mutante com garras retráteis e uma capacidade de regeneração que o torna virtualmente imortal.
Bruce Wayne é um homem. E, antes desse homem, havia um menino — um guri como nós —, que, certa noite, como no maior dos nossos medos, perdeu os pais. Mais trágico ainda: testemunhou o assassinato do pai e da mãe.
Com um jogo de luz sépia e sombras que valeu ao diretor de fotografia Wally Pfister uma indicação ao Oscar, Batman Begins retrata a transformação desse menino amedrontado em Homem-Morcego. Explora demônios interiores e evita que os exteriores sejam caricatos — são eles, além do Espantalho (Cillian Murphy, na primeira de suas seis colaborações com Nolan), o mafioso Carmine Falcone (Tom Wilkinson) e Ra's al Ghul (Ken Watanabe), líder da Liga das Sombras.
Os fãs de Batman familiarizados com Ghul estranharam a escalação de um ator japonês para ser o vilão de nome árabe criado nos gibis em 1971. Mas tudo faz sentido no roteiro. Repetindo: Nolan procura explicar de forma lógica cada aspecto da batmitologia. Isso vale também para os traços mais psicológicos. O Bruce Wayne de Batman Begins não quer só vingar a perda dos pais: ele também se sente culpado por sua morte.
— Minha raiva é maior do que minha culpa — diz um Bruce que ainda não separa justiça de vingança a Ducard (Liam Neeson), seu mentor entre os guerreiros da Liga das Sombras, no Himalaia.
Vêm de Ducard as lições sobre "teatralidade e ilusão" que justificam a escolha do uniforme. Ele ensina que um homem de carne e osso pode ser destruído, mas um símbolo é muito mais assustador. Portanto, Bruce recorre ao mais intimidante símbolo que conhece, mas o filme toma algumas liberdades em relação à origem do personagem costumeiramente contada nos quadrinhos. No livro The Art and Making of the Dark Knight Trilogy, Christopher Nolan explica:
"Nos quadrinhos, a família vai ao cinema para ver A Máscara do Zorro. Trocamos para uma ópera, onde eles assistem a Mefistófeles, que tem criaturas semelhantes a morcegos em cena. Isso relembra Bruce da terrível experiência que teve com morcegos, e então ele pede aos pais para ir embora. Ao saírem, acabam deparando com o ladrão que assassina o pai e a mãe. Nós quisemos, em Batman Begins, conectar o medo de morcegos com o sentimento de culpa. Quisemos que o assassinato de seus pais fosse para sempre associado à ideia do morcego, justificando por que o símbolo se tornou tão significante em sua vida."
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