A plataforma de streaming MUBI resgatou recentemente do limbo digital Ran (1985), um dos tantos clássicos dirigidos por Akira Kurosawa (1910-1998). Vencedor do Oscar de figurinos, assinado por Emi Wada, e indicado nas categorias de melhor direção, fotografia e direção de arte, o filme leva a peça Rei Lear (1606), de William Shakespeare, para o Japão da época dos samurais.
Esse universo, que durou do século 10 ao século 19, era um dos preferidos do cineasta de Kagemusha: A Sombra do Samurai (1980), que dividiu a Palma de Ouro do Festival de Cannes com All That Jazz: O Show Deve Continuar (1979), de Bob Fosse, disputou o Oscar internacional e pode ser visto no Disney+.
Kurosawa atraiu os olhares do Ocidente para o cinema japonês com o sucesso de Rashomon (1950, presente no menu do Belas Artes à La Carte), ganhador do Leão de Ouro no Festival de Veneza e de um Oscar honorário de melhor filme estrangeiro. Sua narrativa em que quatro testemunhas apresentam versões dúbias e conflitantes de um crime já inspirou muitas produções, tanto em Hollywood (O Último Duelo, de Ridley Scott) quanto na China (Herói, de Zhang Yimou).
Leão de Prata em Veneza, Os Sete Samurais (1954, indisponível no streaming) não demorou a ser transformado em faroeste: Sete Homens e um Destino (1960). E A Fortaleza Escondida (1958, também fora de catálogo), que recebeu o Urso de Prata de direção no Festival de Berlim, serviu de referência para George Lucas criar a saga Star Wars, em 1977.
Mas Kurosawa também olhava para o Ocidente. Trono Manchado de Sangue (1957, disponível no Belas Artes à La Carte) é outra adaptação de um espetáculo teatral de Shakespeare, Macbeth (1623). Vencedor da Copa Volpi de melhor ator em Veneza, para Toshirô Mifune, Yojimbo, o Guarda-Costas (1961, ausente das plataformas) bebeu de duas novelas noir do estadunidense Dashiell Hammett, Seara Vermelha (1929) e A Chave de Vidro (1931).
Em japonês, ran significa caos, desordem, revolta. Ambientado no século 16, Ran conta em 166 minutos e de forma majestosa a saga de Hidetora Ichimonji (papel de Tatsuya Nakadai), um poderoso chefe de clã que decide dividir em vida a sua herança entre os três filhos (e não três filhas, como no original de Shakespeare): Taro (Akira Terao), Jiro (Jinpachi Nezu) e Saburo (Daisuke Ryu). A decisão, ao contrário da harmonia pretendida pelo patriarca, faz ruir os laços familiares, culminando em um sangrento conflito.
Saburo, o predileto, reage quando o pai designa o filho mais velho, Taro, para liderar o clã, pois sabe das evidentes limitações do irmão. Então, o caçula é banido.
Hidetora é um homem cheio de remorso: para ampliar seus domínios, matou e saqueou. Sua memória é assaltada por esses pecados do passado. Tanto pior deparar com o ódio e a traição entre seus filhos. Acaba condenado a vagar, enlouquecido, pelos campos, tendo a companhia do bobo da corte.
Quando estreou nos cinemas de Porto Alegre, em outubro de 1985, Ran mereceu muitos elogios dos críticos de Zero Hora. Hiron Goidanich, o Goida, destacou a mescla de cenas intimistas e batalhas épicas.
Já Luiz César Cozzatti escreveu que, "para Kurosawa, importa discutir essa ética da vitória, a ética dos poderosos, que para atingir a hegemonia no seio da sociedade espalham a destruição e a morte". Toda a trama é "mero pretexto para o grande mestre traçar um grandiloquente painel sobre os desvarios da ambição", pintado com a "sensibilidade plástica" do cineasta e seu "humanismo radical". E o diretor mostra que "a desordem é a ordem natural do mundo, pois na raiz de tudo está a estupidez, que sobrepaira as ideologias e os tempos".
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