Por coincidência, um mês após a estreia nos cinemas da homônima refilmagem hollywoodiana, chega ao streaming o original dinamarquês: Não Fale o Mal (Gæsterne, 2022) entrou nesta quarta-feira (9) no menu da Reserva Imovision, que pode ser acessada pelo Amazon Prime Video. O lançamento faz parte de uma parceria com uma plataforma dos EUA especializada em terror, a Shudder — em breve, finalmente estará disponível um filmaço taiwanês exibido em Porto Alegre no Fantaspoa de 2022 (escreverei sobre esse título em uma das próximas colunas).
Dirigido por Christian Tafdrup, que escreveu o roteiro com seu irmão, Mads Tafdrup, Não Fale o Mal começa na Itália, durante as férias de uma família da Dinamarca: Bjørn (papel de Morten Burian, coadjuvante no recente O Bastardo), sua esposa, Louise (Sidsel Siem Koch), e a menina Agnes. Sob o sol da Toscana, eles conhecem um casal holandês com seu filho: Patrick, encarnado por Fedja van Huêt (o jovem protagonista de Caráter, filme ganhador do Oscar internacional em 1998, representando a Holanda), Karin (Karina Smulders) e Abel, que não fala.
Nas ruazinhas e nos restaurantes italianos, as duas famílias aproximam-se, e surge o convite para os dinamarqueses passarem um fim de semana na casa de campo dos holandeses. A partir daí, Não Fale o Mal ilustra como se comprometer com a civilidade pode ser perigoso — em nome de convenções sociais, anulamos os instintos, a intuição, e permitimos a invasão de nossos limites. Satiriza o embaraço dos escandinavos, que, nas palavras de Christian Tafdrup, "não gostam de falar sobre como estão se sentindo, tentam ser educados e se comportar bem, reprimindo o que realmente pensam". Reflete sobre a aptidão humana para se meter na criação dos filhos dos outros. Ironiza ideais da sociedade contemporânea, como o vegetarianismo e a tolerância. Encena diálogos dolorosos sobre as concessões que fazemos nos relacionamentos. Retrata como pode ser explosiva a combinação da masculinidade frágil (Bjørn) com a masculinidade tóxica (Patrick). Perturba o tempo todo, ora porque nos colocamos no lugar dos personagens, ora porque nos revoltamos com suas decisões erradas.
Se você viu a versão estrelada por James McAvoy e Mackenzie Davis, bancada pela Blumhouse, a mesma produtora das franquias Atividade Paranormal e Sobrenatural e do oscarizado Corra! (2017), saiba que há diferenças cruciais.
ALERTA DE SPOILERS (mas que não revelam tudo, sério).
A primeira diferença está na representação de Patrick. Nada contra o desempenho de McAvoy na refilmagem, mas, no original, Fedja van Huêt assombra mais justamente por se permitir a tolice ou a vulnerabilidade, enquanto o astro escocês enche a tela com seus braços musculosos e seu olhar alarmante.
O diretor Christian Tafdrup, por sua vez, emprega uma visão mais amarga, mais cínica e mais seca, que contrasta bastante com as decisões tomadas por James Watkins. O filme desse cineasta inglês é tipicamente hollywoodiano, oferecendo pistas, explicações e, fundamentalmente, segurança. A eterna fantasia da reviravolta, a mítica segunda chance. Ainda que seja efetivamente catártico, o final do filme de Watkins vai na contramão da história dinamarquesa, quebrando a lógica narrativa e privando o espectador de um dos epílogos mais dilacerantes que eu já vi. É uma pedrada.
Em entrevista ao site Games Radar+, Watkins procurou justificar a mudança no final: "Já fiz um filme incrivelmente sombrio antes, então não senti que precisava fazer outro. Você pode proporcionar às pessoas um passeio de montanha-russa totalmente tenso, mas que seja divertido. Diversão entre aspas, é claro. Mas as pessoas precisam de diversão". Em outras palavras, ele entendia que o público precisa sair da sessão de Não Fale o Mal com alguma esperança de que o bem pode vencer o mal. Pelo menos na ficção, não importando quantos erros cometa e com quase nenhum arranhão.
Tafdrup não curtiu. Em entrevista a um programa de rádio de seu país, o Kulturen, criticou as mudanças feitas:
— Não sei o que há com os americanos, mas eles são educados para (produzir e ver) uma história heroica, onde o bem deve vencer o mal. Eles fizeram uma versão extremamente divertida, eficaz e com boas atuações, mas muito menos perigosa. É uma espécie de final feliz, tão enraizado na cultura deles. Quando vi o filme ontem (em Nova York), as pessoas estavam completamente entusiasmadas. Aplaudiram, riram e gritaram. Foi como estar em um show de rock. Já as pessoas que viram o meu filme saíram traumatizadas.
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