Está em cartaz no Espaço Bourbon Country, na sessão das 18h30min, O Diabo na Rua no Meio do Redemunho (2023), versão cinematográfica da diretora Bia Lessa para sua peça homônima de 2017, que é uma adaptação do clássico literário Grande Sertão: Veredas, publicado em 1956 pelo escritor Guimarães Rosa (1908-1967).
É o segundo filme lançado em 2024 que se aventura a verter a história ambientada no mundo violento dos jagunços que barbarizavam o interior de Minas Gerais e da Bahia. O outro foi Grande Sertão, uma modernização assinada por Guel Arraes, com roteiro coassinado por Jorge Furtado. Em ambos os títulos, o protagonista, Riobaldo, é interpretado por Caio Blat.
O ator paulistano de 44 anos concedeu a seguinte entrevista à coluna:
Por coincidência, foram lançados no mesmo ano duas adaptações de Grande Sertão: Veredas, aquela dirigida por Guel Arraes e esta da Bia Lessa. Embora tomem decisões artísticas distintas, os dois filmes convergem ao ressaltar a atemporalidade e a universalidade da obra de Guimarães Rosa, certo? A distopia de Guel leva a história para um cenário urbano, a versão de Bia praticamente prescinde de cenário, com os atores contracenando diante de um fundo preto.
O que torna Grande Sertão atemporal e universal e o que é tão genial no Guimarães Rosa é que se trata de um mergulho pra dentro. Poderia ter sido escrito por Homero, poderia ter sido escrito por Shakespeare. É um mergulho na alma humana, é um arquétipo, é a luta humana entre o bem e o mal e a busca por entender o sentido de estar aqui. Então, o cenário não importa, a época não importa, é sempre o mesmo, a alma humana é sempre um abismo. É isso que o Rosa atingiu, assim como os grandes épicos da humanidade atingiram.
Essas duas adaptações trazem você no papel principal, o de Riobaldo. Qual é o seu sentimento pessoal em relação a isso? E como você difere uma interpretação da outra?
Foi uma emoção muito grande ser convidado pelo Guel Arraes depois de já ter feito a peça da Bia Lessa, para recriar o Riobaldo na versão dele. São duas versões completamente distintas. A da Bia tem essa essencialidade, se priva de cenário, se priva de detalhes e mergulha somente na palavra e no corpo. Acho que a montagem da Bia e o filme da Bia são calcados no corpo dos atores. Isso me emociona muito. Quando termina o filme da Bia, você viu centenas de personagens e paisagens, mas de repente a câmera abre num plano geral e você vê que são apenas 10 atores que construíram tudo aquilo. Isso mostra a potência do teatro, a possibilidade do trabalho do ator, de construir qualquer coisa só com a sua palavra e com o seu corpo. Isso para mim é algo sagrado, é o sentido da minha profissão. Já o Grande Sertão do Guel, que é um diretor popular, traz a possibilidade de transformar uma obra-prima erudita numa obra popular. Isso eu acho totalmente genial e acho que o filme do Guel vai sobreviver durante muitos anos, muitas décadas.
Qual é o maior desafio, a maior dificuldade em trazer para a palavra falada, para a atuação, a prosa de Grande Sertão?
A maior dificuldade com a prosa do Grande Sertão é desrespeitar a poesia. Isso a Bia ensinou a gente muito bem. A gente não pode encarar Grande Sertão como algo sagrado, como algo intocável. A Bia ensinou a gente a abordar Grande Sertão como algo cotidiano, como algo íntimo. Então, podemos dizer aquele texto do Guimarães Rosa como prosa, como algo absolutamente cotidiano, como se os personagens falassem aquela língua que o Guimarães Rosa inventou no seu dia a dia, falando de banalidades. Eu tenho uma amiga, Manuela Dias, escritora, que disse que na peça da Bia a gente transformou o Guimarães Rosa em arroz e feijão. Então é isso, é pegar aquela poesia, aquela língua inventada, aquela coisa espiritual, cultural, épica, e transformar em cotidiano.
Como foi o processo de transformar a peça teatral em um filme? Que mudanças, acréscimos ou supressões precisaram ser feitas?
Transformar a peça em filme foi um processo delicado. Foi um processo de falar para um único espectador, porque a peça era para centenas de espectadores em arena, e o filme é só para a câmera. Então, é como se fosse um único espectador. Ao mesmo tempo, essa câmera podia se aproximar dos personagens muito mais do que o público do teatro. Uma coisa que o filme tem que a peça não tem é essa intimidade com os personagens. Dá a sensação de que você entrou dentro da história e não está só assistindo da plateia.
Li numa matéria que foi trabalhando na adaptação teatral que você e Luisa Arraes se apaixonaram. É possível dizer o quanto a obra em si influenciou nesse romance?
Sim, eu e a Luísa nos conhecemos nesse trabalho, nos apaixonamos, mas acho que mais do que o texto e o amor de Riobaldo e Diadorim, acho que a gente se apaixonou pela nossa paixão comum pelo teatro e pela literatura. A gente encontrou ali uma identificação muito grande nas nossas paixões, nos nossos interesses, nos nossos sonhos. A gente encontrou um sonho comum de amor pela língua brasileira e pelo trabalho de ator, que é poder servir de ponte a muitos públicos, pegar uma obra-prima e apresentar para muitos públicos.
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