Não é de hoje que mulheres estão mandando ver no cinema, mas finalmente agora estão começando a ganhar o reconhecimento que merecem.
Em 2021, diretoras ganharam o Oscar, o Bafta e o Globo de Ouro (Nomadland, de Chloé Zhao), a Palma de Ouro no Festival de Cannes (Titane, de Julia Ducournau), o Leão de Ouro na mostra de Veneza (L'Événement, de Audrey Diwan) — e também o Leão de Prata, para Jane Campion, por Ataque dos Cães — e os principais troféus de Sundance (No Ritmo do Coração, de Siân Heder). Só faltou Berlim.
O ano de 2022 já começou com o triunfo de Ataque dos Cães e de Campion no Globo de Ouro. Será que o Oscar vai premiar pela segunda vez seguida uma cineasta? É isso o que dizem as previsões da revista Variety e do site Gold Derby, por exemplo. Em fevereiro, foi a vez de o Festival de Berlim laurear uma porção de mulheres. Alcarrás, da espanhola Carla Simón, levou o Urso de Ouro, Manto de Gemas valeu à mexicana Natalia López Gallardo o Prêmio do Júri, e a francesa Claire Denis faturou o troféu de direção por Avec Amour et Acharnement. E, no último domingo (6), A Filha Perdida, de Maggie Gyllenhaal, tornou-se o grande ganhador do Film Independent Spirit Awards.
Para marcar o Dia Internacional da Mulher, nesta terça-feira, 8 de março, fiz uma lista com oito filmes recentes, todos assinados por diretoras e todos premiados. Leia também a seleção com 10 guerreiras das séries.
O Chão Sob Meus Pés (2019)
A diretora austríaca Maria Kreutzer aborda a pressão que as mulheres sofrem no ambiente de trabalho, fazendo um drama com ares de suspense de Alfred Hitchcock. A personagem principal é uma executiva que esconde um segredo duplo: o namoro com uma superior e a existência de uma irmã mais velha, que é esquizofrênica. No papel da protagonista, Valerie Pachner ganhou o prêmio de melhor atriz no Festival de Guadalajara, no México, e o troféu do Sindicato dos Atores da Alemanha. (NOW)
Retrato de uma Jovem em Chamas (2019)
Este filme escrito e dirigido pela francesa Céline Sciamma se passa em uma ilha, em 1776, quando uma pintora (Noémie Merlant) é contratada para fazer o retrato de uma garota (Adèle Haenel) prometida em casamento para um cavalheiro de Milão. A artista e a musa se apaixonam, mas esse romance precisa ser nutrido em silêncio. Aliás, o som ambiente é uma das virtudes da obra vencedora do prêmio de melhor roteiro e da Palma Queer no Festival de Cannes. O crepitar de uma lareira ou o estouro das ondas marcam cenas — o fogo como símbolo do desejo que cresce, o mar bravio como símbolo da perturbação emocional das personagens. (canal Telecine do Globoplay, Apple TV, Google Play e YouTube)
Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre (2020)
A estadunidense Eliza Hittman ganhou o Urso de Prata no Festival de Berlim por este filme delicado, mas também contundente. Na trama, uma adolescente (Sidney Flanigan) de uma cidadezinha tenta fazer um aborto após descobrir que está grávida. A diretora e roteirista mergulha na intimidade das personagens para trazer à tona as violências cotidianas a que garotas como a protagonista e sua prima (Talia Ryder) são submetidas. A denúncia é explícita, mas sem grito. Investe-se em silêncios e interditos, aposta-se na nossa intuição e na nossa imaginação para preencher lacunas. (canal Telecine do Globoplay, Apple TV, Google Play e YouTube)
A Filha Perdida (2021)
Em seu primeiro longa-metragem como diretora, a atriz estadunidense Maggie Gyllenhaal adapta o romance homônimo publicado pela escritora italiana Elena Ferrante em 2006. É protagonizado pela inglesa Olivia Colman, oscarizada por A Favorita (2018) e, com o perdão da repetição, favorita ao Oscar no papel de Leda Caruso, uma professora universitária que, durante suas férias em uma praia da Grécia, fica obcecada por uma jovem mãe (Dakota Johnson) e sua filha. A partir de então, Leda se vê confrontada por memórias dos tempos em que ela própria (encarnada por Jessie Buckley) tinha de lidar com suas duas crianças. A trama de mistério e perigo é entrelaçada à abordagem, com despudor, de temas como maternidade, sexualidade, papéis sociais e ambição profissional. A Filha Perdida ganhou quatro troféus no Gotham Awards (melhor filme, o Bingham Ray para diretores estreantes, atriz e roteiro) e venceu as categorias de melhor filme, direção e roteiro no Film Independent Spirit Awards. (Netflix)
Ataque dos Cães (2021)
O filme da diretora Jane Campion, a mesma de O Piano (1993), é um faroeste tardio e desconstrutivo: se passa em 1925 e desmancha a aura mítica dos caubóis. O protagonista é interpretado por Benedict Cumberbatch, o Sherlock da série de TV e o Doutor Estranho do Universo Cinematográfico Marvel, no grande desempenho de sua carreira. Seu personagem, Phil Burbank, estudou na prestigiada faculdade Yale mas preferiu levar uma vida de bronco. Essa vida começa a ser abalada quando o irmão dele (Jesse Plemons) se casa com uma mãe viúva (Kirsten Dunst), que tem um filho adolescente de traços e modos delicados (Kodi Smit-McPhee). Ataque dos Cães já ganhou mais de 200 prêmios, incluindo o Leão de Prata no Festival de Veneza e os Globos de Ouro de melhor filme/drama, direção e ator coadjuvante (Kodi Smit-McPhee), e é o líder em indicações ao Oscar (soma 12). (Netflix)
No Ritmo do Coração (2021)
CODA, o título original, é a sigla de Child of Deaf Adults, filho de pais surdos. Trata-se da versão da cineasta estadunidense Siân Heder para o filme francês A Família Bélier (2014). A premissa é a mesma, trocando uma fazenda por uma cidade pesqueira. A adolescente Ruby (papel de Emilia Jones) é a única ouvinte e falante entre os Rossi — todos interpretados por atores surdos: Troy Kotsur (o pai), Marlee Matlin (a mãe) e Daniel Durant (o irmãos mais velho). Atraída por um colega de escola que canta, Miles (Ferdia Walsh-Peelo), resolve se inscrever nas aulas do coral comandado pelo professor Bernardo Villalobos (o mexicano Eugenio Derbez, equilibrando humor, rabugice e ternura). A situação acabará criando um dilema doloroso para Ruby, abrindo portas para temas como amadurecimento e pertencimento. Comovente e também divertido, No Ritmo do Coração ganhou quatro troféus no Festival de Sundance do ano passado, concorre a três Oscar (melhor filme, ator coadjuvante — Troy Kotsur — e roteiro adaptado) e tem sido assíduo nas premiações prévias. Inclusive recebeu as estatuetas de melhor elenco e de ator coadjuvante no SAG Awards, do Sindicato dos Atores dos EUA. (Amazon Prime Video)
A Noite do Fogo (2021)
Ganhou menção honrosa na mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes, foi um dos 15 semifinalistas do Oscar de melhor filme internacional, representando o México, e valeu a Tatiana Huezo uma indicação ao troféu do Sindicato dos Diretores dos EUA na categoria de estreante — embora ela não seja: assinou os documentários El Lugar más Pequeño (2011) e Tempestade (2016). Há semelhanças temáticas e estilísticas entre as três obras. Em A Noite do Fogo, Huezo observa o cotidiano de um povoado violentado pelo narcotráfico pelos olhos de três meninas: Ana (vivida por Ana Cristina Ordóñez González na infância e por Marya Membreño na adolescência), Maria (Blanca Itzel Pérez/Giselle Barrera Sánchez) e Paula (Camila Gaal/Alejandra Camacho). O perigo e a morte estão sempre nas redondezas, o silêncio e a fuga são aliados vitais, o medo dita os passos — sobretudo os das mães e os das filhas, como enfatiza o título brasileiro do romance em que a ficção se baseia: Reze pelas Mulheres Roubadas. (Netflix)
Titane (2021)
Julia Ducournau fez história no Festival de Cannes do ano passado. Primeiro por apresentar um filme em que a personagem principal é uma assassina serial que faz sexo com um carro — deve ter sido ousadia demais para a Academia de Hollywood, que deixou Titane de fora da lista dos 15 semifinalistas do Oscar de melhor longa internacional. Depois porque, quase 30 anos após a conquista da neozelandesa Jane Campion com O Piano (1993), a diretora e roteirista francesa tornou-se a segunda mulher na história a ganhar a Palma de Ouro.
Como em Raw (2016), a cineasta tem uma jovem como protagonista e trabalha questões como identidade e sexualidade — na obra anterior, uma vegetariana que estuda Veterinária vira canibal. Para tanto, Ducournau não se furta de lançar mão de imagens perturbadoras e da violência gráfica. O corpo, seja o da atriz Agathe Rousselle, que interpreta a dançarina Alexia, seja o do ator Vincent Lindon, que encarna um bombeiro à procura do filho desaparecido, é um personagem à parte.
— Eu sou muito, muito interessada em corpos. Gosto muito de filmá-los e gosto de usar os corpos dos meus personagens para falar sobre a sua psique — disse ela em entrevistas à época do lançamento de Raw.
— O que adoro na gramática do terror corporal é que, se você desligar o som da TV e assistir ao filme, não só ainda entende o enredo, como também entende o que está acontecendo dentro do personagem e como ele se sente, porque é retratado em sua pele e em seu corpo.(MUBI)