Fiquei feliz com a liderança de Ataque dos Cães nas indicações ao Oscar, divulgadas nesta terça-feira (8). Com a reabilitação de Kristen Stewart (Spencer), que havia ficado de fora do prêmio do Sindicato dos Atores dos EUA e do Bafta. Com a dobradinha de A Filha Perdida: Olivia Colman concorre a melhor atriz, e Jessie Buckley, a coadjuvante. Com o novo recorde de Denzel Washington, que, por A Tragédia de Macbeth, disputa pela décima vez o prêmio da Academia de Hollywood. Com o reconhecimento, entre os atores, a Andrew Garfield (Tick, Tick... Boom!) e Troy Kotsur (No Ritmo do Coração). Com a marca estabelecida por Kenneth Branagh, diretor de Belfast: sete disputas por sete categorias diferentes. Com a presença da comédia dramática romântica norueguesa A Pior Pessoa do Mundo na lista dos roteiros originais. Com a confirmação de A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas nas animações. Com a visibilidade que o documentário Ascension, sobre o trabalho na China, vai ganhar. E, mesmo sem ter visto os filmes, com as façanhas do japonês Drive my Car (briga por quatro estatuetas douradas, incluindo melhor filme e direção) e do dinamarquês Flee (o primeiro título na história a competir pelos troféus de animação, documentário e filme internacional).
Mas lamento muito quatro ausências entre os indicados.
São quatro filmes que, apesar de zero indicações, considero entre os melhores da temporada — e que, em maior ou menor grau, tinham chances reais de figurar na lista do Oscar, atraindo mais espectadores.
Vejam o caso de Identidade (em cartaz na Netflix), a adaptação de um romance publicado em 1929 pela escritora estadunidense Nella Larsen (Passing, no título original). Disputou cinco categorias no Gotham Awards (destinado a produções com orçamento de até US$ 35 milhões) e soma quatro indicações ao Bafta: melhor filme britânico, atriz (Tessa Thompson), atriz coadjuvante (Ruth Negga, também indicada ao Globo de Ouro, ao SAG Awards, do Sindicato dos Atores dos EUA, e ao Independent Spirit Awards) e melhor estreia de um diretor, roteirista ou produtor britânico (Rebecca Hall, também concorrente ao troféu de estreante do Sindicato dos Diretores dos EUA).
O filme é ambientado na Nova York dos anos 1920 e conta a história de duas mulheres que, depois de crescerem juntas, se reencontram na vida adulta: Irene (papel de Thompson) se identifica como negra e está casada com um médico negro (que sonha em se mudar para o Brasil, um país onde, segundo ele, não há racismo); Clare (Negga) se passa por branca e tem um marido rico e preconceituoso. Amparada pela belíssima fotografia em preto e branco e por uma melancólica trilha sonora, Rebecca Hall — ela própria neta de um homem negro que adotou a identidade branca e que criou os filhos como brancos — conduz a trama com uma delicadeza que não esconde as tensões. Tanto as decorrentes do reencontro quanto as raciais, que permeiam as relações na sociedade dos EUA.
Pig: A Vingança, em exibição no canal Telecine do Globoplay, não gerava muitas expectativas em relação ao Oscar. Mas concorreu ou concorre a importantes prêmios prévios: o de melhor filme no Gotham Awards, o de melhor estreante (Michael Sarnoski) no DGA Awards, do Sindicato dos Diretores dos EUA, o de roteiro no Independent Spirit Awards e o de melhor ator (Nicolas Cage) no Critics Choice, entregue por críticos estadunidenses e canadenses.
É nessa última categoria que a Academia de Hollywood, na minha opinião, errou ao escalar Javier Bardem (Apresentando os Ricardos) e não Cage. No papel de um ex-chef de cozinha que se isolou na floresta, onde caça trufas negras na companhia de sua porca, o ator tem um dos melhores desempenhos de sua carreira. Está contido, concentrado, evitando seus famosos maneirismos. Cativa e emociona, sem jamais escorregar para a pieguice. Merecia disputar pela terceira vez o Oscar (venceu por Despedida em Las Vegas, de 1995, e competiu também por Adaptação, de 2002). É um pecado que ele some mais indicações — oito — ao famigerado Framboesa de Ouro. Se serve de consolo, nunca "ganhou".
Os outros dois esquecidos pela Academia de Hollywood estavam entre os 15 semifinalistas de suas respectivas categorias.
Disponível na Netflix e dirigido por Robert Greene, o documentário No Caminho da Cura é sobre seis homens que, na infância, foram abusados sexualmente por padres. Vale enfatizar o plural: os depoimentos evidenciam que não havia apenas uma maçã podre na Igreja Católica dos EUA, mas uma rede de pedofilia. Em jogos de beisebol ou passeios em lagos, os clérigos exibiam uns aos outros os meninos que estupravam. No presente, enquanto lutam por Justiça, os seis sobreviventes são convidados pelo diretor e por uma dramaterapeuta para criar e estrelar pequenos filmes sobre seus próprios traumas. É o processo ao qual se refere o título original, Procession.
Monica Phinney, a dramaterapeuta, esclarece a proposta:
— Vejo traumas como uma coisa pegajosa, que gruda numa parte do cérebro. Nos livramos deles externando-os de forma que faça sentido para nós. Nem sempre entendemos a pintura, a encenação que fazemos. Mas uma vez encenados, seja lá como, com a contenção e a segurança da arte, nosso cérebro pode reabsorvê-los usando a lógica e a razão.
Também disponível na Netflix, A Noite do Fogo era digno de vaga no Oscar de melhor filme internacional (representando o México). Ganhou menção honrosa na mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes, disputa o prêmio da categoria no Independent Spirit Awards e valeu a Tatiana Huezo uma indicação ao troféu do Sindicato dos Diretores dos EUA na categoria de estreante — embora ela não seja: assinou os documentários El Lugar más Pequeño (2011) e Tempestade (2016).
Há semelhanças entre os três filmes. No primeiro, rodado em El Salvador, onde a diretora nasceu, os habitantes de uma cidadezinha revivem suas experiências durante a guerra civil no país (1979-1992) enquanto lembram de seus entes queridos. O segundo acompanha as jornadas de duas mexicanas vítimas da corrupção policial e do tráfico humano. Em A Noite do Fogo, Huezo observa o cotidiano de um povoado violentado pelo narcotráfico pelos olhos de três meninas: Ana (vivida por Ana Cristina Ordóñez González na infância e por Marya Membreño na adolescência, ambas atrizes novatas, recrutadas nas comunidades rurais mexicanas), Maria (Blanca Itzel Pérez/Giselle Barrera Sánchez) e Paula (Camila Gaal/Alejandra Camacho). O perigo e a morte estão sempre nas redondezas, o silêncio e a fuga são aliados vitais, o medo dita os passos - sobretudo os das mães e os das filhas, como enfatiza o título brasileiro do romance publicado em 2014 por Jennifer Clement em que a ficção se baseia: Reze pelas Mulheres Roubadas.