Está chegando a hora. A partir das 22h (horário de Brasília) deste domingo (9), serão anunciados os premiados da 92ª edição do Oscar. Antes de a cerimônia no Teatro Dolby, em Los Angeles, começar, já conhecemos alguns vencedores e perdedores: os filmes e os artistas que foram merecidamente indicados (e que, por isso, ganharam visibilidade) ou lamentavelmente ignorados. Fiz aqui um balanço sobre o que eu tenho a agradecer e o que vale um puxão de orelhas na Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood.
Primeiro, eu agradeço ao Oscar por...
1) ...dar ampla e merecida visibilidade a Parasita. Após as seis indicações ao Oscar, incluindo os de melhor filme e diretor (Bong Joon-ho), houve um aumento de 80% no número de salas que exibiam o título sul-coreano no Brasil. Vencedora da Palma de Ouro no Festival de Cannes e queridinha da crítica, a obra conquistou o público do país – afinal, retrata uma realidade com a qual também estamos acostumados: o fosso que separa ricos e pobres. Mas o cineasta faz isso de forma tão surpreendente, misturando gêneros como comédia farsesca, thriller de suspense e drama social, que a sensação é de que nunca havíamos visto um filme como Parasita.
2) ...reconhecer, ainda que não totalmente, o engenho cinematográfico de 1917. O épico de Sam Mendes sobre a Primeira Guerra Mundial emplacou 10 indicações, mas poderia estar concorrendo em mais categorias. Ao decidir filmar como se fosse um único plano-sequência, ou seja, sem cortes, o diretor envolveu uma equipe técnica extraordinária: o veterano fotógrafo Roger Deakins, por exemplo, mistura força, mágica e poesia, e a cenografia foi construída e posicionada milimetricamente, pois personagens movem-se de um lado a outro constantemente. Uma pena que a Academia de Hollywood não tenha indicado o trabalho invisível do editor Lee Smith – sim, porque 1917 somente simula ser um filme sem cortes. Na verdade, há dúzias deles, ligando cenas longas, de seis a oito minutos, e curtas, com pouco mais de um minuto.
3) ...valorizar o vigoroso trabalho do elenco de História de um Casamento. É o único filme com três atores disputando a estatueta dourada (e poderia ter um quarto, né? Tanto Alan Alda, como o advogado bonzinho, quanto Ray Liotta, como o tubarão dos tribunais, merecia concorrer ao prêmio de coadjuvante). Adam Driver vai perder para o Coringa de Joaquin Phoenix, mas seu Charlie Barber equilibra contenção e explosão, transmitindo, às vezes na mesma cena, ternura e raiva, humor e dor. Scarlett Johansson vai perder para a Judy Garland de Renée Zellweger, mas, na pele de Nicole Barber, também consegue manifestar as emoções conflituosas que costumam pautar uma separação. E Laura Dern, bem, será uma zebraça se sair da festa sem o Oscar de atriz coadjuvante. Ela rouba a cena desde o primeiro momento em que aparece como a advogada implacável e tem um monólogo antológico, aquele sobre a diferença de tratamento a homens e mulheres nos casos de divórcio.
4) ...abraçar a proposta, se não inédita, ainda assim ousada de Jojo Rabbit. Fazer comédia sobre o nazismo e a perseguição aos judeus, com direito a Adolf Hitler como amigo imaginário, e tendo um guri de 10 anos como protagonista era uma tarefa espinhosa. Mas o diretor Taika Waititi (que interpreta o Führer caricato) saiu-se muito bem. Indicado a seis Oscar, inclusive o de melhor filme, Jojo Rabbit provoca gargalhadas sem prescindir do drama e do choque; ridiculariza os nazistas sem esquecer que eles são perigosos (seja no passado ou no presente). E ainda revelou um talento mirim, Roman Griffin Davis, hoje com 12 anos. Ah, e dos nove concorrentes à principal estatueta, tem o final que mais me fez chorar – não de tristeza, mas de uma súbita alegria.
5) ...transformar todo brasileiro em um crítico de cinema por conta da indicação de Democracia em Vertigem. Um dos cinco postulantes na categoria de melhor documentário, o filme da diretora Petra Costa sobre a turbulência política no país desde o impeachment de Dilma polariza opiniões. Há quem o considere catártico por "revelar a verdade sobre o golpe", outros ironizam, dizendo que é "ficção" e "mentiroso". Por isso, ao contrário do que seria o habitual (lembrem de O Quatrilho, em 1996, ou Central do Brasil, em 1999), neste domingo a nação não deve estar unida na torcida por uma inédita estatueta dourada para o cinema nacional.
6) ...entender que as plataformas de streaming são concorrentes das salas de cinema, mas não do ofício cinematográfico. A cada ano, a Academia e a Netflix estreitam relações – a última vem qualificando suas produções, que recebem o reconhecimento da primeira. Foram oito indicações em 2018, 15 em 2019 e 24 em 2020 – é a produtora recordista, superando a Disney (23) e a Sony (20) graças a O Irlandês (10 categorias), História de um Casamento (seis), Dois Papas (três), as animações Klaus e Perdi meu Corpo e os documentários Democracia em Vertigem, Indústria Americana e A Vida em Mim (curta). E ainda ficaram de fora títulos elogiados pela crítica, como Meu Nome É Dolemite e Joias Brutas.
7) ...destacar a urgência de Os Miseráveis, um dos três melhores filmes lançados no Brasil em 2020. Escondida sob o favoritismo de Parasita na categoria de filme internacional, a obra de estreia do francês de ascendência malinesa Ladj Ly atualiza o retrato das tensões sociais pintado no clássico literário de Victor Hugo (1802-1885). Com estilo naturalista, a câmera foca em um subúrbio de Paris e acompanha a escalada de um conflito que envolve imigrantes de diferentes etnias, um grupo de adolescentes e um trio de policiais. Por causa do sufocante epílogo, permaneci sentado até o final dos créditos. Imperdível. Um pecado já ter saído de cartaz em Porto Alegre.
Mas faltou convidar para a festa...
1) ...as mulheres que fazem cinema. É vergonhoso e revoltante olhar para trás e contar apenas cinco diretoras indicadas ao prêmio da categoria nas 92 edições do Oscar. Para esta temporada, não faltavam candidatas, a começar por Greta Gerwig, cujo Adoráveis Mulheres disputa as estatuetas de melhor filme e melhor roteiro adaptado (pela própria cineasta). Havia também Lulu Wang, de The Farewell, vencedor do troféu do público no Festival de Sundance e concorrente ao Globo de Ouro e ao Bafta (o Oscar britânico) de longa estrangeiro. Mas talvez a maior injustiçada seja a francesa Céline Sciamma, que fez uma pintura de filme em Retrato de uma Jovem em Chamas: preterido por Os Miseráveis na corrida francesa pelo Oscar internacional, este hipnótico drama acabou ficando fora do radar da Academia.
2) ...um elenco mais diversificado e representativo. O discurso de Joaquin Phoenix ao receber o Bafta por Coringa, na semana passada, caberia no Oscar também: "Acho que enviamos uma mensagem muito clara às pessoas de cor de que elas não são bem-vindas aqui (eram brancos todos os indicados nas categorias de ator, atriz, ator coadjuvante e atriz coadjuvante). Temos de trabalhar duro para entender o racismo sistêmico". A Academia de Hollywood destacou uma única artista negra, Cynthia Erivo, protagonista da cinebiografia Harriet (ainda inédita no Brasil). Muita gente reclamou da ausência de Lupita Nyong'o, estrela de Nós. A comédia Meu Nome É Dolemite, sobre um expoente da Blaxploitation, poderia render indicações a Eddie Murphy e, principalmente, a um impagável Wesley Snipes. A comunidade asiática tinha pelo menos dois representantes em potencial: Song Kang-ho, o pai da família pobre em Parasita, um sujeito aparentemente cansado pela vida, mas ainda conhecedor dos atalhos, e Awkwafina, rapper e atriz americana de origem chinesa-coreana, premiada no Globo de Ouro por seu papel em The Farewell.
3) ...a turma do pós-terror. Tradicionalmente, o Oscar ignora os filmes de horror. O sucesso de Corra! (2017), que venceu o de roteiro original e concorreu a melhor filme e diretor (Jordan Peele), foi uma exceção. Desta vez, três títulos poderiam ser vistos com mais carinho: o já citado Nós, de Peele, Midsommar, de Ari Aster (Florence Pugh merecia brigar por melhor atriz, por exemplo, e a fotografia solar de Pawel Pogorzelski também era digna de uma indicação), e O Farol, de Robert Eggers, o único lembrado – o fotógrafo Jarin Blashke concorre por seu estupendo trabalho em preto e branco com câmeras antigas e formato quadrado). Faltou listar Willem Dafoe entre os atores coadjuvantes: cada frase que ele diz no papel de um velho marinheiro e cada expressão de seu rosto vincado valem o ingresso.