No (cada vez mais) longínquo território da minha infância, o sino comunicava. O repicar firme e contínuo anunciava a festa, o casamento, o batizado, a missa do domingo ou uma boa nova qualquer. Se fosse mais rápido, talvez uma tragédia que precisasse acordar a comunidade, como um incêndio na madrugada (sem estatística que sustente minha tese, acho que a maioria dos incêndios acontece na madrugada). Caso as badaladas se arrastassem, espaçadas, lúgubres, não havia dúvida: tratava-se do anúncio de uma morte.
Pouco antes de minha mãe morrer, quando a cidade inteira acompanhava sua agonia, numa noite de garoa fina de fim de inverno, o sino tocou. Para muitos, era a confirmação: as badaladas decretavam o fim do sofrimento. E, durante um comício que se desenrolava naquele período pré-eleitoral, fez-se até um minuto de silêncio em homenagem à falecida. Só que não. O sino realmente anunciava morte, mas de outra pessoa que não minha mãe. Passados dois dias, quando ela morreria de verdade, encerrando seu martírio, de novo os sinos dobraram e, se não bastasse uma, tocaram duas vezes.
A barbearia instalada ao lado da igreja era um ponto de observação privilegiado. Em instantes a notícia era confirmada
Assim que se confirmou a notícia, seu Marcelino correu até a igreja e se dependurou nas cordas do campanário para avisar sobre o infortúnio. Um som dolorido para todos nós que, sim, sabíamos ser questão de horas, mas lutávamos por protelar o luto. Ocorre que o outro sineiro, seu Terra, já em idade avançada e com a audição prejudicada, não ouviu. E, com um pouco de atraso, disparou também até a paróquia e tocou outras tantas badaladas. Assim, se dependesse desse código tão antigo quanto emblemático, minha mãe teria morrido três vezes.
Creio que ela não se incomodaria com a imprecisão. Talvez a visse até como uma honraria. Dona Rosa confiava no que dizia o sino. Antes de termos telefone instalado em casa, bastava a primeira badalada, dessas que anunciavam morte, para que ela nos despachasse até o centro da cidade – a poucas quadras da nossa casa –, especificamente a um lugar. Deveríamos ir até a barbearia para saber quem havia morrido. A novidade era dada como certa se viesse pela boca do João Barbeiro, como era carinhosamente chamado por todos, a profissão tomando o lugar do sobrenome. Fonte seguríssima.
Lembrei-me do João Barbeiro, dias atrás, quando estava sentada numa longa espera, dessas a que as mulheres se submetem num salão, uma versão atual da barbearia da minha infância. Apesar das horas em que fiquei ali, não recebi uma única informação sobre nada. Havia sete pessoas comigo. Cinco permaneceram quase o tempo todo imersas nesse mundo que hoje cabe em uma única e minúscula tela. Só a recepcionista, envolvida com o trabalho de organizar a agenda, e eu, distante demais para interagir com ela, não usávamos o celular. Não soube de notícias do bairro, da cidade, nem de nada do que acontecia no mundo naquele sábado de verão. Não quis também capitular ao silêncio grupal e deixei meu aparelho na bolsa. Fiquei só com meus pensamentos.
Senti nostalgia. Saudade de notícias que não venham filtradas por algoritmos. Saudade das novidades – não só dos obituários, ressalve-se – que circulavam pela barbearia do João Barbeiro. Saudade também do sino, que sempre me dizia alguma coisa. Saudade da dona Rosa. Saudade de mais conversa.