Nos últimos 10 anos, nas entrevistas feitas com pais e mães dos jovens que morreram no incêndio da Boate Kiss, em Santa Maria, o pedido mais repetido foi "não permitam que nossos filhos sejam esquecidos". O temor das famílias era de que colasse o discurso de encerrar o luto para devolver a normalidade à cidade. Nestes 10 anos, que podem ser definidos como uma década de impunidade, os pais, mães, irmãos e amigos trataram de não deixar cair no esquecimento a tragédia que ceifou 242 vidas.
Lembrar o que ocorreu em 27 de janeiro de 2013 é também uma forma de luta para evitar que a tragédia se repita. O que ocorreu em Santa Maria não foi uma fatalidade, mas uma série de negligências difusas, pelas quais ninguém pagou e talvez nunca venha a pagar.
É preciso relembrar o cenário daquela noite, até para alertar os jovens sobre como fugir de arapucas como a Boate Kiss. A casa estava superlotada, não havia saídas de emergência nem sinalização adequada. Na hora do incêndio, provocado por um sinalizador disparado por um dos integrantes da banda Gurizada Fandangueira, garçons tentaram impedir que os jovens saíssem sem pagar a conta e o brete por onde se podia alcançar a rua virou um corredor da morte. Os que tentaram se refugiar no banheiro morreram asfixiados porque as janelas estavam lacradas.
A tragédia começou a ser escrita nos meses que precederam ao incêndio. A vizinhança incomodada com o barulho que vazava da Kiss procurou o Ministério Público para denunciar os proprietários e exigir providências. Um termo de ajustamento de conduta foi assinado e os proprietários se comprometeram a instalar um sistema de isolamento. Ninguém fiscalizou a qualidade da espuma. Os bombeiros atestaram que a casa estava em dia e a prefeitura renovou o alvará de funcionamento.
Os meses que se seguiram ao incêndio foram de mutirões por parte de prefeituras de todo o Brasil, fiscalizando casas noturnas, fechando as que não cumpriam as regras de segurança, e fazendo blitze nas noites de sexta-feira e sábado. Legisladores correram a aprovar regras mais rígidas para o licenciamento de empreendimentos, mas nestes 10 anos essas medidas foram abrandadas, quando não esquecidas.
As famílias reviverão nesta sexta-feira (27) a noite que gostariam de apagar de suas vidas. Todas as homenagens que mobilizam Santa Maria nesta semana são ofuscadas pela dor que decorre da impunidade.
Os pais e mães podem ter certeza: no que depender da imprensa, seus filhos não serão esquecidos.