No mundo das telenovelas que consagrou Regina Duarte como uma das mais conhecidas atrizes brasileiras, os autores usam a morte do personagem ou uma viagem sem volta para se livrar, de forma natural, dos atores e atrizes que não correspondem à expectativa ou que criam problemas nas gravações. Assídua, disciplinada e querida do público, Regina quase sempre chegou ao último capítulo das novelas com os espectadores torcendo por um final feliz, até porque na maioria absoluta dos casos era a mocinha da história.
Nos capítulos iniciais de sua primeira experiência em um cargo público, Regina está percebendo que na vida real da política não basta ser disciplinada, sorridente e cheia de boas intenções.
A ala radical do governo já vinha pedindo sua cabeça antes da entrevista para o Fantástico. Ao chamar essa ala de "facção", a veterana atriz pode ter selado o destino de seu personagem no cenário de Brasília. Não será surpresa se pedir para sair do elenco, incomodada com as grosserias de que é alvo nas redes sociais, vindas dos aliados do governo — porque às críticas da esquerda ela já mostrou que não dá a mínima bola.
Nesta segunda-feira (9), Regina levou uma carraspana pública do ministro Luiz Eduardo Ramos, pelo Twitter, uma arena em que ela nunca atuou. Um dos principais avalistas da indicação da atriz, o general publicou três posts em sequência. Pelo tom, o ministro chefe da Secretaria de Governo não falou em nome pessoal. Disse o general:
"O Presidente valoriza a Cultura, que deve se espelhar na família tradicional e nos princípios cristãos. Nosso governo tem um norte: a vontade da maioria do seu povo. Nisso Regina e Bolsonaro devem estar juntos. São seus ministros e secretários que devem se moldar aos princípios publicamente defendidos pelo Presidente da República, não o contrário. O uso do termo "facção" em entrevista, sem nomear seus supostos integrantes, dá a entender que há divisões inexistentes e inaceitáveis em nosso governo. Devemos trabalhar todos pelo mesmo objetivo, seguindo a orientação político-ideológica do nosso Presidente e defendendo os valores e convicções do povo brasileiro".
No dia da posse, o presidente Jair Bolsonaro já havia dado uma letra de que a carta branca prometida no convite não era tão branca assim. Que ela teria poder para indicar sua equipe, mas que ele se reservava o direito de vetar alguma indicação.
Embora tenha sido econômica nas respostas ao repórter Ernesto Paglia e rezado pela cartilha de Bolsonaro quando endossou a tese de que o poder público não deve financiar filmes ou outras manifestações artísticas para as minorias (que busquem financiamento privado, orientou), Regina pecou pelo uso da palavra facção e por expressar algumas ideias que não batem com o senso comum do bolsonarismo.
Questionada sobre o destino do presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, que deu declarações contestadas pelo movimento negro em relação à escravidão, a secretária afirmou:
— Voltamos aí a essa situação da política, que interfere no fazer cultural, na medida em que temos uma pessoa que é ativista, mais que um gestor público. Estou adiando esse problema porque essa é uma situação muito aquecida. Não quero que esse desequilíbrio que estou percebendo aí ganhe mais espaço.
Pela manhã, Camargo mandou uma direta pelo Twitter: "Bom dia a todos, exceto a quem chama apoiadores do Bolsonaro de facção e o negro que não se submete aos seus amigos da esquerda de 'problema que vai resolver'".
Adepta de primeira hora da candidatura de Bolsonaro, Regina passou a ser chamada de esquerdista por seguidores de Olavo de Carvalho. O fato de já ter feito campanha para candidatos do PSDB — de Fernando Henrique Cardoso a José Serra — a transformou em esquerdista, comunista e outros adjetivos do gênero. Até de "cavalo de Troia" a atriz foi chamada por integrantes do que chama de "facção".
Dos Estados Unidos, onde palpita sobre o governo Bolsonaro como se fosse o conselheiro do rei, Olavo escreveu nesta segunda-feira no Facebook:
"A Regina Duarte age como se o seu emprego no governo lhe pertencesse por direito natural contestado apenas por 'uma facção bolsonarista', quando na verdade foi essa facção, representada pelo presidente da República, quem lhe deu o emprego. A óbvia inversão psicótica da realidade mostra que a véia não está boa da cabeça e não deve ocupar cargo nenhum."
"Véia" é uma das expressões vulgares usadas pelos olavistas quando querem ofender uma mulher madura. Regina poderia viver sem essa, mas achou que emprestando seu prestígio a um governo detestado pela maioria dos artistas estaria contribuindo para a cultura brasileira.
Como as mocinhas que interpretou, a atriz foi ingênua. Trocou um emprego em que ganhava mais, sabia onde estava pisando e recebia aplausos por uma função pública em que está, desde antes da posse, entregue aos leões.
Atualização das 21h: Escolhida por Regina Duarte para comandar a Secretaria da Diversidade, Maria do Carmo Brant de Carvalho teve a nomeação publicada no Diário Oficial da União (DOU) desta segunda-feira. No fim da tarde, a designação foi anulada em edição extra do DOU.
Maria do Carmo foi secretária de Assistência Social do governo Dilma Rousseff.