Na terça-feira, um amigo querido deixará a redação de Zero Hora depois de 40 anos. Na verdade, são 20 mais 20, porque Clóvis Malta trabalhou por 20 anos, saiu para respirar outros ares por uma curta temporada e voltou para mais duas décadas em que sua presença serena fez diferença na editoria de Opinião.
Malta e eu temos muitas coisas em comum, mas uma em especial nos aproxima mais do que qualquer outra: nascemos e trabalhamos na roça antes de exercer a profissão que escolhemos quando ainda éramos crianças. Como eu, Malta foi para a escola já alfabetizado, mas nesse ponto nossas biografias têm uma diferença abissal: o pai dele não achava que estudar fosse importante e não deu qualquer estímulo ao guri que não se conformava em passar a vida domando aquele pedaço de terra de onde a família tirava o sustento. Tive mais sorte. Meu pai sempre achou que os filhos deveriam estudar para que não precisassem passar pelos sacrifícios que ele enfrentou como pequeno agricultor.
Malta desafiou o pai. Aprendeu a ler sozinho, foi aluno dedicado e passou no vestibular da UFRGS. Meu pai ensinou-me a ler, deu-me um remédio chamado Renascim, porque ouvira dizer que deixava as crianças mais inteligentes, e me mandou para a cidade com 10 anos, para frequentar o ginásio. Apesar de achar que o jornalismo era uma profissão sem futuro, nem tentou me dissuadir quando passei no vestibular da PUC. Ao contrário, correu para arranjar o dinheiro da matrícula e comemorou cada uma das minhas pequenas conquistas enquanto esteve entre nós.
Malta lembrou da nossa origem semelhante no dia em que fizemos um singelo ato de despedida. Ele já estava em ZH quando cheguei, em 1992. Nesses anos todos, aprendi a admirá-lo não apenas pelo texto correto, mas pela pessoa generosa que sempre foi. Nesta segunda passagem, Malta escrevia os editoriais, atividade que exige conhecimentos sólidos, texto qualificado e uma boa dose de humildade e desprendimento. O editorialista traduz o pensamento da empresa. O autor vive no anonimato. Talvez por isso, tantas pessoas tenham se surpreendido com a excelência das crônicas de Malta, quando começou a publicá-las, eventualmente, em ZH. Malta tem alma de Rubem Braga e, longe da rotina da redação, poderá dedicar à literatura o tempo que na rotina dos últimos anos lhe faltou.
Sentiremos falta do colega atencioso e discreto que pautou sua vida profissional pela ética e foi, sempre, sinônimo de gentileza.