Mais conhecida por seu livro de estreia, A Casa dos Espíritos, a chilena Isabel Allende é uma das autoras mais lidas da América Latina e tem uma legião de fãs que aguardam com ansiedade seus novos lançamentos — há 35 anos, por superstição, ela começa seus livros sempre no dia 8 de janeiro. Incluo-me entre esses leitores cativos.
Já escrevi aqui sobre O Amante Japonês, seu livro anterior. Acabo de terminar a leitura de Más Allá del Invierno, que decidi encarar no original, a despeito do meu espanhol intermediário. Para quem quiser ler em português, a tradução (Muito Além do Inverno) pode ser encontrada nas boas casas do ramo, como se dizia antigamente.

Mais do que a história ambientada em um inverno de Nova York, são fascinantes as biografias dos três personagens: a chilena Lucía, professora convidada de uma universidade de Nova York, o americano, Richard, professor titular da mesma instituição e dono da casa da qual ela é inquilina, e a guatemalteca Evelyn, imigrante ilegal que entra na história como fio condutor da aventura que não vou contar aqui para não estragar a surpresa.
O Brasil entra na página 162 (de um total de 350 na versão em espanhol da editora Plaza Janés). Richard Bowmaster, o professor, estudou Ciência Política nos Estados Unidos, aprendeu português quando criança, visitando a avó em Lisboa, e resolveu fazer sua tese de doutorado sobre "as manobras da oligarquia brasileira e seus aliados, que levaram a derrotar o carismático presidente João Goulart em 1964 e terminar com seu modelo político e econômico". Escreve Allende: "Goulart foi deposto por um golpe militar, apoiado pelos Estados Unidos, no marco da Doutrina de Segurança Nacional para combater o comunismo, como tantos outros governos do continente, antes e depois do Brasil. Foi substituído por sucessivas ditaduras militares que haveriam de durar 21 anos, com períodos de repressão dura, encarceramento de opositores, censura da imprensa e da cultura, tortura e desaparecimentos".
Esse trecho, que de ficção não tem nada, explica por que o personagem Richard, então com 21 anos (estamos em 1985 na história de Allende) procurou a viúva Maria Thereza Goulart, recém- chegada do exílio, para uma série de entrevistas. Descreve a autora (e aqui mantenho a frase no original, para não estragá-la com a tradução): "Richard se encontró frente a una dama con la prestancia y seguridad que otorga la belleza cuando es de nascimiento".
Páginas adiante, quando reconta a história do casamento do jovem estudante com uma brasileira, professora de academia de dança, Allende registra que os únicos convidados de Richard eram o pai e um amigo argentino, que vieram dos Estados Unidos, e a viúva de Jango, "todavia jovén y bella", que "había tomado certo afecto maternal al guapo estudiante americano".
A passagem de Richard pelo Brasil é marcada por uma tragédia que deixará cicatrizes profundas na alma do professor e que nada têm a ver com política. Os retalhos da história recente do Brasil servem apenas de pano de fundo de sua passagem pelo Rio de Janeiro. Há uma imprecisão na forma como Allende sintetiza o fim da ditadura e o início do período de redemocratização, em 1985, como se a eleição tivesse sido direta, mas a descrição do cenário econômico do país é irretocável: "... a ditadura havia se abrandado, se haviam restaurado os direitos políticos e relaxado a censura. Mais importante, o governo havia permitido o triunfo da oposição nas eleições parlamentares de 1982. Richard viveu as primeiras eleições livres (sic). O povo expressou seu repúdio para com o governo militar e seus partidários dando a vitória a um candidato de oposição (Tancredo Neves), mas em uma má jogada da história, morreu antes de assumir o cargo. Foi seu vice-presidente, José Sarney, um latifundiário próximo dos militares a quem coube inaugurar a Nova República e consolidar a transição para a democracia. O momento era fascinante para um estudioso da política como Richard. O país enfrentava problemas muito graves de todo tipo, tinha a maior dívida externa do mundo, estava atolado em uma recessão, o poder econômico se concentrava em poucas mãos e o resto da população sofria com inflação, desemprego, pobreza e desigualdade, que condenavam muitos à permanente miséria".
O livro de Isabel Allende é minha dica de leitura para este domingo de outono.