
O jornalista Vitor Netto colabora com o colunista Rodrigo Lopes, titular deste espaço.
O diplomata, cientista político e economista Marcos Troyjo, acredita que o Brasil foi "razoavelmente poupado" do tarifaço imposto por Donald Trump na última semana.
O empresário, que entre janeiro de 2019 e julho de 2020 foi secretário especial de Comércio Exterior e Assuntos Internacionais do Ministério da Economia do Brasil e depois foi presidente do New Development Bank (NDB), conhecido como Banco do Brics, conversou com a coluna na quinta-feira (3) durante o Fórum da Liberdade.
Nesta sexta-feira (11), ele será um dos speakers no painel "Navegando pela nova geopolítica da inovação", no South Summit, na Capital. Leia os principais trechos da conversa.
Em uma entrevista em dezembro o senhor falou que o governo Trump poderia favorecer o Brasil. Na última semana o senhor disse que não há pontes entre os dois governos. O que mudou?
Na realidade, quando disse que o governo Trump poderia favorecer o Brasil, é porque hoje nós estamos no pé da montanha de uma nova guerra fria entre os Estados Unidos e a China. E como nós vimos, já houve a extensão de dois cobertores de tarifas antes do dia 2 de abril, incidindo sobre as exportações chinesas para os Estados Unidos, e ontem (na quarta-feira, 2) o anúncio de mais uma camada tarifária. Acho que os chineses, que são sempre muito estrategistas, muito transnacionais, entendem que se retalharem os americanos na mesma proporção, eles acabam por prejudicar a sua própria economia (a declaração do economista foi feita na última semana, antes da retaliação imposta nesta terça e quarta-feira, 8 e 9). Então, eles vão identificar aqueles setores da economia americana em que há uma espécie de desproporção entre o que representa para a economia como um todo e a voz que esse setor tem nos ciclos decisórios de Washington. Claramente um desses setores é o setor do agro, e de fato há três semanas os chineses anunciaram barreiras às exportações americanas para a China de soja, milho, carne de porco, carne de frango e carne de boi. Áreas em que o Brasil tem grandes vantagens comparativas. Durante o século 21, o principal vendedor de alimentos para a China foram os Estados Unidos, até 2019, quando nesses últimos cinco, seis anos o Brasil tomou a liderança dos americanos. Ainda assim o volume exportado pelos Estados Unidos à China todo ano de alimentos é considerável. Ora, se os chineses vão impor barreiras às exportações americanas do agro, qual é o único país do mundo que tem a capacidade, tanto em termos de velocidade, agilidade e de escala, para substituir quase que automaticamente esse fluxo exportador dos Estados Unidos para a China? É o Brasil. Acho que nós iremos ver um aumento das exportações brasileiras para a China no agro. Segunda característica: com mais restrições ao comércio chinês nos Estados Unidos, os chineses vão ter que buscar outras formas de fomentar a sua economia, de modo que eu acho que vem aí um novo esforço fiscal para a continuação do investimento em infraestrutura na própria China, o que vai demandar insumos, por exemplo, para a indústria de construção civil, que o Brasil fornece, sobretudo no setor mineral. Em terceiro lugar, a China no passado era uma grande potência comercial, mas era um ator razoavelmente tímido em termos de investimento estrangeiro direto e investimento financeiro. Hoje, a China é um gigante do comércio internacional, é um gigante do investimento estrangeiro direto e é também um gigante das finanças internacionais. E, nesse momento, existem tantos obstáculos para o investimento externo chinês nos Estados Unidos, no Canadá, no México e na Europa, que uma das poucas jurisdições no mundo que ganharam atratividade para o investimento chinês, é o Brasil. Aqui pode haver um encontro entre necessidade e potencialidade, por exemplo, para diminuir as distâncias do déficit infraestrutural que o Brasil tem. É nesse sentido que eu acho que pode favorecer o Brasil. Agora, na relação direta com os Estados Unidos, o Brasil é um país muito peculiar. Hoje, existem mais ou menos 193 países do mundo. O Brasil consegue ser um dos oito ou nove países que tem superávit comercial com a China. Por outro lado, o Brasil é um dos poucos países do mundo que tem déficit comercial com os Estados Unidos. Então, realmente, se você quiser fazer uma interpretação da imposição de tarifas, e o fato do Brasil só ter sido objeto da tarifa na alíquota mais baixa, de 10%, isso se deve menos a ações do governo brasileiro ou de pontes que foram estabelecidas, e mais ao fato de que o Brasil não tem superávit comercial com os americanos, e mesmo do ponto de vista do estoque total de exportações, as nossas exportações para os EUA são pequenas. Aliás, hoje nós estamos vivendo uma situação em que de cada US$ 2 que o Brasil exporta, US$ 1 vai para a Ásia. E se você fizer a radiografia por país, de cada US$ 100 que o Brasil exporta, US$ 33 vão para a China, US$ 12 vão para os EUA. Hoje, o Brasil exporta mais para a China do que para os americanos e a União Europeia juntos. É mais ou menos nesse sentido que as coisas estão caminhando. Realmente, não há pontes significativas entre a administração Trump e a atual administração brasileira, até pelo menos o final do ano que vem. Por outro lado, a nossa relação, quando comparada com a relação comercial que os EUA tem com outros países, ela foi razoavelmente poupada pela decisão de Trump.
E como você avalia as tarifas impostas por Trump na quarta-feira (2)?
Acho que os critérios que o governo dos Estados Unidos utilizou foi, em primeiro lugar, privilegiar na imposição de tarifas países com os quais os Estados Unidos têm um grande déficit comercial, então China, a União Europeia como um todo, e também volume de exportações. Um, nós não temos superávit comercial com os americanos, dois, nossas exportações são razoavelmente pequenas. Agora, dito isso, se você fizer uma radiografia daquilo que o Brasil exporta para a China e se você fizer uma radiografia daquilo que o Brasil exporta para os Estados Unidos, a concentração em exportações de bens industriais de mais valor agregado é, sobretudo, para eles. Estados como Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo, que são a base industrial do Brasil, vão ser, em alguma medida, afetados pela imposição de tarifas. Agora, como as tarifas foram impostas a praticamente todos os parceiros comerciais, no frigir dos ovos, no dia seguinte, a situação não muda muito para o Brasil. Mudaria mais se outros países não tivessem recebido tarifas do seu comércio americano. Mas não é o caso. Os chineses estão com alíquotas mais altas, os europeus, os indianos. O Brasil e a Argentina estão lá embaixo.
No ano passado surgiu a ideia de uma moeda do Brics. Como o senhor avalia isso?
Às vezes, essas discussões fazem mais parte de uma esfera retórica ou de fóruns políticos do que uma realidade em construção. Porque se você viesse a criar uma moeda que refletisse a concordância e o peso relativo de países emergentes, você teria de ter um grande consenso, por exemplo, entre as duas mais importantes economias do mundo emergente, que é a Índia e a China, que são sócios dos Brics, mas tem grandes diferenças geopolíticas. Acho que seria muito difícil imaginar que os indianos cederiam parte da sua soberania monetária em nome de uma divisa que viesse a refletir um peso relativo maior de uma economia que é cinco vezes maior do que a da Índia, que é o caso da economia da China.
O países integrantes do Brics podem, de alguma maneira, criar uma guerra comercial com o ocidente?
Acho que os países dos Brics estão olhando o jogo, estão assistindo o jogo, levando em consideração seus interesses nacionais, seus interesses individuais. Por exemplo, a Índia é parte dos Brics. A Índia, que hoje é a quinta maior economia do mundo, está prestes a ultrapassar o Japão, ser a quarta maior economia do mundo do ponto de vista do PIB nominal. Ela é parte dos Brics, mas também é da parte do Quad, que é uma aliança que envolve a EUA. Há uma grande comunidade indiana vivendo em território americano e que reverte recursos abundantes na forma de transferências, remittances (remessas). Só em 2024, os indianos receberam US$ 120 bilhões das comunidades expatriadas para a sua economia. Isso é praticamente duas vezes o que o Brasil, por exemplo, recebe em termos de investimento estrangeiro direto. Acho difícil você pensar nos Brics como um polo unido e uniforme que viesse a disputar com outras regiões do mundo, outros países, uma guerra comercial.
Você tem acompanhado a gestão da ex-presidente Dilma Rousseff na liderança do banco dos Brics?
Não tenho acompanhamento.
O que deveria ser prioridade agora do Brasil na guerra geopolítica que estamos vivendo?
O cenário geopolítico é um cenário de grande insegurança alimentar, grande insegurança energética, um ponto de interrogação do que diz respeito à transição para uma economia mais descarbonizada, uma economia mais verde. E é um cenário também em que há uma reacomodação das chamadas cadeias globais de valor. Um fenômeno que muita pouca gente está percebendo é a desindustrialização da China. Em cada um desses quesitos, o Brasil (se) diz presente. Quer dizer, um, o Brasil é um dos quatro maiores produtores mundiais de alimentos. Dois, o Brasil tem uma das mais diversificadas matrizes energéticas do mundo. Três, o Brasil é um ator indispensável no campo da discussão sobre a economia verde. Quatro, o Brasil tem um mercado interno de 212 milhões de habitantes, que já foi a principal potência industrial do Hemisfério Sul e que poderia, sim, com condições de negócios mais amistosas, receber uma parte importante desse fluxo de desindustrialização para a China, que poderia significar reindustrialização para nós. E talvez um dos grandes obstáculos aqui seja a carga tributária como percentual do PIB no Brasil, porque nós estamos pagando muito impostos como sociedade. No final da presidência (Joe) Biden agora nos Estados Unidos, a carga tributária como percentual do PIB nos Estados Unidos era de 27%. Nós estamos em 33%. Nós somos um país que tem uma renda per capita hoje que equivale a mais ou menos um oitavo da renda per capita nos Estados Unidos. E toda a conversa do governo Trump é cortar mais impostos ainda para quem se instalar nos Estados Unidos. Então, nós estamos muito pesados do ponto de vista tributário para poder nos beneficiar da maneira como nós poderíamos de um reposicionamento dos polos industriais do mundo.