Não haveria melhor período para o governo Joe Biden anunciar o boicote diplomático que os Estados Unidos farão aos Jogos de Inverno de Pequim: às vésperas da chamada Cúpula da Democracia, que o presidente americano irá liderar, de forma virtual, nas próximas quinta (9) e sexta-feira (10).
O argumento da Casa Branca para o boicote, que não evitará o envio de atletas, é a perseguição do Partido Comunista Chinês ao povo uigur, de Xinjiang. Embora se saiba que o pano de fundo real é a disputa geoestratégica do século 21 entre a hegemonia americana e a potência desafiante em ascensão, perseguição político-religiosa é um dos quesitos que fazem da China um regime autocrático.
O boicote já era esperado há semanas e foi anunciado na segunda-feira (6). Outra certeza: ninguém imaginava que a China fosse convidada por Biden para a Cúpula da Democracia. O que chama a atenção é o momento do anúncio - um gol estratégico - e a falta de critério, ao menos publicamente, para a escolha de quem sentará à mesa da reunião de cúpula, ainda que virtual.
Democracia e ditadura são termos cada vez mais fluidos nesse século 21. Como já comentei aqui, eleições não são - nem nunca foram - pré-requisito único para caracterizar regimes livres: Saddam Hussein costumava se eleger no Iraque com 100% dos votos; Bashar al-Assad, na Síria, atinge percentuais quase equivalentes.
Para ficarmos em um denominador comum, democracias liberais se configuram a partir de liberdade de imprensa e expressão, direito de manifestações e mobilizações públicas e de se formarem organizações políticas, eleições livres e independência entre poderes do Estado.
Por isso, é de se estranhar a presença do presidente Rodrigo Duterte, o autoritário líder das Filipinas, e de representantes do governo polonês, na reunião de Biden. Estarão lá também líderes de governo de Iraque, Angola e República Democrática do Congo. Ao menos, a Casa Branca foi coerente em deixar de fora Recep Erdogan, da Turquia, e Viktor Orbán, da Hungria.
Segundo o ranking da Freedom House, dos 110 países chamados a Washington, 31 são "parcialmente livres" e três são "não livres". Não seria exagero dizer, então, dizer que 34 nações participantes da Cúpula da Democracia não são "democracias plenas".
Da mesma lista, 76 são consideradas "livres" pela Freedom House. O que veremos: representantes de Suécia, Finlândia, Noruega, França e Alemanha, por exemplo, sentados lado a lado (de novo, virtualmente falando) de déspotas em formação ou com currículo já forjado por perseguições a jornalistas e a opositores políticos.
No ranking da Freedom House, o Brasil ocupa a 74ª posição. É considerado "livre". O presidente Jair Bolsonaro foi convidado e confirmou presença.
Assim como caracterizar democracia hoje depende de conceitos mais fluidos, para ditaduras exige-se o mesmo raciocínio. Regimes autoritários não começam mais com quarteladas - ao menos não a maioria. Máquinas de desinformação (fake news), asfixia da imprensa independente, golpes constitucionais, aproveitando-se de frestas da Constituição, e processos de corrosão das instituições configuram-se métodos mais eficientes à direita e à esquerda. Trinta e quatro líderes que estarão conversando com Biden na Cúpula da Democracia têm alguma expertise em pelo menos um desses quesitos.