Se os impactos da pandemia sobre nações pobres da África já são preocupantes diante do risco de aprofundar a fome, os efeitos adicionais da covid-19 podem ser ainda mais devastadores, em especial para mulheres e crianças.
O alerta é do pesquisador Arthur Catraio, da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), autor da tese de doutorado sobre economia política de conflitos armados e da fome crônica no continente.
Para o estudo sobre a fome e conflitos, com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), ele pesquisou a situação em países como Djibuti, Etiópia e África do Sul.
À coluna, ele lembra que medidas de restrição de deslocamento, em razão da covid-19, pode ter confinado mulheres junto a seus abusadores em países africanos. Em outros, alerta que pessoas subnutridas, sem acesso à água para higiene, estão mais vulneráveis à infecções. A seguir, o resumo da conversa.
Que impactos a pandemia deve ter na situação da fome na África?
A primeira questão é a própria definição de fome. A gente pode falar sobre o impacto da pandemia sobre a prevalência de fome crônica e sobre a fome aguda. A fome crônica é a manifestação de um problema estrutural. A fome aguda pode ser a manifestação de um problema pontual, consequência de uma crise mais específica, por exemplo. Fome, como definido pela Organização Mundial da Saúde (OMS), é o consumo inferior de quilocalorias necessárias por dia dada uma série de fatores como idade, tipo de trabalho realizado, gênero, altura, etc. É basicamente o resultado de não consumir um número de calorias mínimo necessário para a manutenção orgânica de um corpo saudável. A fome crônica é um resultado de estar nessa condição de subnutrição por um período superior a um ano.
Só dá para pensar o impacto da pandemia sobre a fome se a gente entender como a pandemia pode impactar os canais que constituem o sistema alimentar de cada país. Também pode ser causada por interrupção nos segmentos de distribuição, diretamente afetados por uma condição econômica desfavorável, que limita as atividades econômicas, mas também por queda no nível de renda dos consumidores.
A pandemia afeta os dois tipos. A curto prazo, quais os efeitos na fome aguda das populações africanas?
Estamos falando de um impacto mais imediato e que tem como consequência uma restrição severa no acesso aos produtos alimentícios. A fome aguda compromete a população de tal modo que pode levar a crises alimentares, inclusive a números elevados de morte por fome a curto prazo. Isso é mais preocupaste em países em conflito, como Sudão do Sul e República Democrática do Congo. Mas tanto a fome aguda quanto a fome crônica são causadas por fatores de distúrbio do sistema alimentar de cada país. A fome pode ser causada por uma redução na oferta de alimentos, que é composta geralmente pela produção nacional e pela importação de alimentos. Só dá para pensar o impacto da pandemia sobre a fome se a gente entender como a pandemia pode impactar os canais que constituem o sistema alimentar de cada país. Também pode ser causada por interrupção nos segmentos de distribuição, diretamente afetados por uma condição econômica desfavorável, que limita as atividades econômicas, mas também por queda no nível de renda dos consumidores. E a gente também pode falar da fome causada por uma restrição diretamente ao acesso ao consumo. E aí isso pode se dar tanto pelo encarecimento dos produtos alimentícios ou pelo esgotamento da reserva de produtos no mercado, que pode estar atrelado a uma redução na produção, na importação ou na distribuição de alimentos no mercado interno.
Se a curto prazo, o impacto já poderá ser sentido, a médio e longo prazos a pandemia pode ser devastadora, aprofundando níveis de fome crônica?
A fome crônica existe em muitos países da África subsaariana, mas atinge níveis mais graves em Zâmbia, República Centro-Africana, Chade e Zimbábue. Nesse último, mais de 50% da população vive em condição de fome crônica. O impacto da pandemia vai depender das consequências de longo prazo sobre o sistema alimentar e sobre a estabilidade institucional local, incluindo os efeitos sobre sistema de saúde, sobre a economia, que podem afetar a receita corrente, que por sua vez afeta a capacidade dos governos e de importadoras privadas na importação de alimentos, diminuindo a oferta de alimentos disponíveis, possivelmente encarecendo os produtos e impactando o acesso ao consumo de alimentos e o orçamento público necessário para implementação de medidas de seguridade social para proteção da população civil.
Eu sou mais pessimista com relação à consequência trágica, do impacto assimétrico da pandemia sobre diferentes grupos da população, como as mulheres, que tendem a não ter poupança por ocuparem apenas os postos com menor remuneração.
Causam surpresa os números de infecções da África serem ainda reduzidos em relação a outros continentes?
Em alguns casos é surpreendente, em outros, não. Parte da surpresa deriva simplesmente do fato de que inexiste a capacidade de testar as pessoas e coletar dados. Sem dúvida, parte do pequeno número de pessoas contaminada se deve a uma subnotificação que nem sequer é possível estimar. Se a gente não tem nenhuma base de dados para criar modelos de estimação seria impossível estimar qual seria o nível esperado de contaminação em cada país
Não há parâmetro?
Perfeito, mas há casos em que não se deve a uma surpresa, mas à qualidade dos governos. É importante acompanhar o que tem acontecido na Namíbia, que não tem nenhum caso novo de coronavírus no país há mais de três semanas. Isso em parte deve-se ao excelente trabalho da primeira-ministra Saara Kuugongelwa. Cada país tem uma dinâmica institucional própria, uma territorialidade que afeta como o vírus se propaga. A Namíbia tem vantagem territorial por ser um país pouco denso demograficamente, basicamente é composta de dois desertos muito grandes. Por esse fator regional, somado às iniciativas do governo, que impôs lockdown logo no início nas principais cidades, que recebem voos internacionais, a Namíbia conseguiu esse resultado que é bastante impressionante.
Quando o senhor pensa sobre a fome e pandemia, é pessimista ou é possível ainda reverter o impacto por meio de alguma política pública?
Com alguns países, infelizmente, sou bastante pessimista. Com relação a outros, estou otimista. Uma das possíveis ações para minimizar o impacto da pandemia seria a renegociação ou quem sabe até a liquidação da dívida externa dos países. A dívida externa nos países africanos limita a capacidade de resposta dos governos locais em termos de orçamento. Dito isso, acho muito legal chamar atenção para o Djibuti. Desde 1990, o país não teve crescimento econômico e, ainda assim, consegui combater a fome por meio da estabilização das instituições locais e de distribuição mais equitativa dos produtos alimentícios e de acesso ao mercado de alimentos, incluindo acesso à água salubre tanto para consumo humano quanto para uso agrícola. Se, por um lado, parte da preocupação sobre o impacto da pandemia se deve aos efeitos sobre indicadores econômicos, por outro é possível minimizar e reduzir os níveis de fome independentemente de fatores econômicos. Essa é uma lição que o Djibuti traz para pensar nas alternativas de soluções para outros países. Eu sou mais pessimista com relação à consequência trágica, do impacto assimétrico da pandemia sobre diferentes grupos da população, como as mulheres, que tendem a não ter poupança por ocuparem apenas os postos com menor remuneração. Agora, essas mulheres podem estar confinadas com seus abusadores, nos países que estão impondo medidas de isolamento. Com relação à fome, mulheres grávidas que entrarem em quadro de anemia podem significar um impacto intergeracional na saúde das crianças. Há enorme população de migrantes sem acesso a bens e serviços públicos, há campos de refugiados, moradores de rua, povos originários, entre outros grupos. Se por um lado, sou otimista na possibilidade de organizar soluções alternativas para combater os efeitos da pandemia sobre a fome, por outro a realidade é bastante terrível em termos de impacto assimétrico sobre os diferentes grupos.
Ou seja, a covid-19 pode não ter impacto apenas na fome, mas em outros tipos de problemas, como o aumento da violência doméstica.
Estudando a fome em países africanos, é muito triste constatar que a fome normalmente impacta pessoas que já sofrem com diversas outras dificuldades. No caso das mulheres, é uma série de fatores concomitantes, que prejudicam a saúde. Nos países mais do norte da África subsaariana, há alto percentual de mulheres que sofreram mutilação genital e que vivem com pouco acesso à água salubre para higiene e ainda passam fome. Isso significa que são mulheres que estão vulneráveis a inúmeros tipos de infecções, que não têm acesso aos recursos necessários para higiene e que, estando subnutridas, têm um sistema imunológico mais fragilizado diante de todos esses fatores. Sem a menor dúvida, há grupos que vão ser muito mais impactos do que outros.