Com data marcada para deixar o Haiti (15 de outubro), a missão de paz da ONU comandada pelo Brasil é alvo de uma denúncia da agência de notícias Associated Press, segundo a qual militares cometeram estupros sistemáticos e outros abusos sexuais ao longo dos 13 anos de operação. Na segunda-feira, em resposta às revelações, a entidade informou que está fazendo “progressos” para convencer governos que fornecem tropas para as operações no sentido de levar os militares criminosos à Justiça em seus países.A reportagem da AP traz nomes de haitianas vítimas de soldados, inclusive brasileiros. Uma delas, identificada como Janila Jean, conta que há três anos, quando tinha 16 e era virgem, teria sido levada para bases da Minustah em troca de alimentos. Segundo a acusação, ela fora estuprada com uma arma apontada para sua cabeça. Janila engravidou e contou que chega a imaginar “estrangulando sua filha”. Outras três mulheres teriam sido estupradas naquele dia. Temendo represália, nenhuma delas apresentou denúncia à época. O comandante da Minustah, general Ajax Porto Pinheiro, 60 anos, rejeita enfaticamente as acusações nesta entrevista, concedida na quinta-feira, pro telefone do Haiti. Na conversa, o militar, natural de Bragança, no Pará, também avalia a missão e fala sobre o calendário de retirada do país:
Ao final de 13 anos de Brasil no Haiti, o país não anda com as próprias pernas. A sensação é de missão cumprida ou de que deveria ficar mais tempo?
Na parte militar, que comando, já cumprimos a nossa missão. O país está estável, entrou em um período de calmaria como há muito tempo não se via. A ONU está saindo em um momento certo. Mas lembrando que saem os militares, fica ainda uma parte do outro componente, que é o policial, e uma missão com conotação civil, que visa o aperfeiçoamento das instituições.
Como o senhor está lidando com as denúncias de estupro por tropas brasileiras?
Esse assunto não sei nem porque está voltando. Não temos nenhuma denúncia. Eu me responsabilizo pelo componente militar, o que ocorre com os policiais ou com civis em qualquer missão é responsabilidade de outras áreas. Falo pelo meu pessoal. E, quanto a esses, não tenho nenhuma denúncia contra eles. Há três anos que nada ocorre, sequer acusações. Garanto que não ocorrem porque tomamos todas as medidas. Os soldados só saem para rua para patrulhar. São orientados, são soldados disciplinados, treinados em seus países. Aqui, ministramos instruções, os comandantes são todos responsáveis. São militares de carreira, pais de família, que jamais admitiriam que algo assim ocorresse. São acusações infundadas. Ora se fala de uma base, mas a pessoa não diz que base que é essa. Cita cidades que nós nunca estivemos. Falou-se de uma base em Jacmel, onde tropas brasileiras nunca estiveram. Elas nunca saíram da capital. Quem faz a acusação diz que aconteceu há três anos. São coisas muito sem embasamento. Não sei qual é a intenção de quem faz esse tipo de acusação: pode ser por querer alguma indenização ou para denegrir a imagem da missão. O fato é que não há nada concreto.
Fala-se também de soldados do Sri Lanka acusados de estupro.
Isso foi há 10 anos. E foram tomadas à época providências. A ONU é muito rigorosa. Isso é ponto de honra para a ONU e para os exércitos sérios. É ponto de honra pra nós. Falo pelas minhas tropas, que comando. Elas não fazem isso em seus países. Não cometem esse tipo de ilegalidade, de crime em seus países. São soldados de boa índole, que vêm para fazer o seu trabalho. Honestamente, esse tipo de assunto não sei nem de onde surge. Agora, garanto que é um tema que nos deixa sempre atentos. Somos muito rigorosos com isso. Não aconteceu e não vai acontecer. Vamos sair daqui com a honra de termos cumprido nossa missão de forma limpa, com profissionalismo. Mas é o que eu digo: respondo pelos meus soldados. Quanto a eles, nada tem ocorrido nos últimos anos.Há também muitas denúncias na África. Que medidas a ONU poderia tomar?A ONU está tomando medidas. Tem sido muito rigorosa em outras missões na África. Tem exigido do país que tome providências rigorosas contra quem comete esse tipo de crime. É a lei internacional. A ONU exige que o país faça uma investigação muito rigorosa, que puna o criminoso e que continue sendo julgado em seu país. É repatriado. Aqui não é notícia para nós porque não tem acontecido.
Quais foram os aprendizados da missão para o Brasil?
Muitos. Tem o aprendizado operacional, o fato de trazer tropas para uma situação real, em um país distante. Os soldados são treinados nesse ambiente, e, aqui, o dia a dia é de operações nas ruas. O país é testado frente a outros exércitos, trabalhando em conjunto, não deixa de ser uma troca de experiências. E, principalmente, o aprendizado logístico, trazer todo esse equipamento pra cá, manter as tropas bem instaladas aqui, o equipamento funcionando, os aviões da Força Aérea que vêm aqui, os navios da Marinha, todo o sistema logístico do Ministério da Defesa tem de funcionar bem aqui, porque, se não funcionar, as tropas param de trabalhar. Isso também contribuiu para uma maior integração das três forças no Ministério da Defesa.
Foi a missão mais difícil?
Foi, até agora nunca tivemos tantos soldados envolvidos em missão de paz como no Haiti.
Como será a saída?
Já começamos a saída. No dia 15 de abril, tropas do Uruguai e do Peru encerraram suas operações no nordeste do país. O Brasil deve encerrar as operações no dia 1º de setembro. Aí terá de 1º de setembro até 15 de outubro pra tirar todo seu pessoal e material. Devo ser o último a entrar no avião, receber a bandeira da ONU, prestar continência e entrar no avião.
Há quem ache que o Brasil gasta no Haiti dinheiro que poderia estar investindo aqui. Qual a sua opinião?
Uma missão como essa para um país como o Brasil não é dispendiosa. Tem que se considerar que a ONU reembolsa os custos no Haiti. Se o país quer investir mais em suas tropas, naturalmente gasta até mais do que a ONU retribui. Mas isso é uma opção do país, e não é muito em relação ao que a ONU reembolsa. Isso é um investimento em preparação da tropa e compra de equipamentos, que voltarão para o país. Os equipamentos que estão aqui são um sistema como se fosse um leasing. A nossa engenharia aqui tem um guindaste, que a engenharia do Brasil não tem. Foi comprado, está novo e vai voltar para o Brasil. Esse equipamento voltará e vai equipar alguma unidade de engenharia. Para cada viatura, cada caminhão-tanque, gerador a ONU paga uma indenização. Um reembolso mensal do que é usado. Então, os custos para o país não são grande. E vendo o treinamento e o equipamento da tropa é extremamente compensador.
Foi também um desafio do ponto de vista de segurança. A batalha de Cité Soleil foi talvez a maior batalha envolvendo tropas brasileiras desde Monte Castelo, na II Guerra Mundial.
De confronto. Eu sempre separo. Eu digo que, em missão de paz, não há combate. Uma forma de falar. Batalha eu não uso. Eu digo que estou em uma missão de paz. Então, é confronto, que realmente foi sério. E hoje, o país está pacificado.
Quais foram os pontos negativos?
As perdas de vida que tivemos, não se quer, não se deseja, mas aconteceram. O resto eu só vejo como positivo.
Inclusive perdas brasileiras, né?
Principalmente. O país que mais perdeu soldados na missão foi o Brasil. Foram 18 (militares) no terremoto, dois generais, incluindo os problemas vários, e outros três militares. Uns 23. Foram muitas vidas, há muito tempo a gente não perdia vida de militares nossos no exterior.
O senhor esteve no terremoto e agora chegou para substituir o general Jaborandy, que era seu amigo, inclusive. Do ponto de vista pessoal, é um desafio também?
Isso aqui é uma história de vida pra mim e profissional. Eu cheguei em dois momentos de choque: eu cheguei com o terremoto, os brasileiros saindo. No dia em que cheguei os corpos estavam sendo levados para o Brasil. Os 18 militares. E agora voltei em outubro de 2015, após o falecimento inesperado, chocante pra nós, do general Jaborandy. Quando o militar vem, não deixa de ser uma conquista profissional, ele vem feliz, sabe dos desafios, mas é um momento de felicidade. No meu caso, era diferente. Não podia nem comemorar. Cheguei com a morte dos brasileiros e agora com a morte do Jaborandy, para substituí-lo, um mês depois do falecimento. Nas minhas duas vindas aqui a chegada foi em clima de comoção.
E o futuro do Haiti?
Eu acho que eles chegaram a um ponto em que adquiriram velocidade própria. Como o país entrou no clima de estabilidade é natural que os investimentos venham para o país. Turismo, principalmente, começou. Já estão investindo em turismo, ainda incipiente, até porque a área mais visada, que eles estavam mexendo mais, Jerémie, por exemplo, foi violentamente atingida pelo furacão Mathew. Isso atingiu o coração turístico deles. Mas eles já estão mexendo e vão recuperar. Tudo isso começou porque o país entrou em um período de 13 anos estabilidade. A polícia deles tem evoluído. São 13 mil, até o fim do ano vão chegar a 15 mil militares, que é o índice que a ONU considera aceitável. Ao longo desses anos, o treinamento deles foi melhorando. Acho que eles estão preparados. A parte política entrou em um processo de evolução positiva. Acho que estão preparados para assumir as próprias responsabilidades. O grande legado que vamos deixar aqui é uma geração que viu o país estável, que tinha cinco anos quando as tropas chegaram e hoje tem 18 anos. Esses jovens, de 18 anos hoje, estão acostumados, aprenderam a viver em um país que tem paz e estabilidade. Crises, como qualquer país tem, mas aprenderam que é possível e bom viver em um país estável. São eles que vão daqui pra frente os líderes do país. É o grande legado que vamos deixar, além da ajuda que fizemos na área social, projetos de infraestrutura, captação de água e purificação, ajuda a hospitais e orfanatos, eles aprenderam conosco a viver em um país estável. Em El Salvador, em 1992, eu era capitão, observador militar, o país saindo de uma guerra civil, e entrou em um período de ascensão. El Salvador é hoje um país que não precisa das Nações Unidas. É a terceira missão de paz que participo e mais uma vez estou otimista.