Em 2009, ouvi, em Honduras, pequeno país da América Central imerso em uma crise institucional para a qual o Brasil havia sido sugado naquela época, uma expressão que me marcou. Entre marchas e contramarchas diárias, ataques contra nós, jornalistas, eu tentava, em Tegucigalpa, entender o golpe que tirara do poder Manuel Zelaya, na ocasião refugiado na embaixada brasileira. Os adversários do presidente deposto diziam que, ao tentar convocar um plebiscito para ampliar seu mandato, ele havia atentado contra a Constituição e suas cláusulas pétreas. Por isso, na visão dos golpistas, não eram eles que estavam tirando o presidente do poder senão o próprio que havia se "autoanulado".
O argumento é tão falacioso quanto o de quem tentar transformar a vítima em algoz. Não que Zelaya fosse de todo inocente, mas essa é uma outra discussão.
Agora, sou surpreendido de novo com a expressão "autoanular-se" para explicar um golpe, desta vez na Venezuela e pela voz da primeira-dama Cilia Flores. “A Assembleia, estando em desacato, se autoanulou", disse a mulher do presidente Nicolás Maduro e deputada da situação.
O Tribunal Supremo de Justiça, ao não reconhecer a Assembleia porque esta estaria atuando em desacato a sua ordem de impugnar três deputados do Estado do Amazonas, assumiu todas as competências do Legislativo. Na quinta-feira, o despacho é uma pérola de como as palavras podem ser deturpadas para uso em proveito próprio:
"(...) Enquanto persistir a situação de desacato e invalidez das atuações da Assembleia Nacional, esta Sala Constitucional garantirá que as competências parlamentares sejam exercidas diretamente por esta sala ou por órgão que ela dispuser, para velar pelo Estado de Direito."
A Assembleia se "autoanula", e a Suprema corte sepulta a divisão dos poderes em nome de uma pretensa defesa do "Estado de Direito", que há muito deixou de habitar a Venezuela.
Sempre evitei dizer que o regime de Hugo Chávez, e agora de Nicolas Maduro, fosse uma ditadura. Quando questionado, minha resposta era de que há características autoritárias: não há censura explícita, mas jornalistas são perseguidos; líderes políticos, como Leopoldo Lopez, estão presos, e o governo dominou por anos os três poderes. Alguém dirá: mas há eleição. Quando lembro que, no Iraque e no Irã dos tempos de Saddam Hussein e de Mahmoud Ahmadinejad também havia eleições, deixo de ver no critério único o voto para caracterizar um regime como democrático. Aliás, o próprio termo democrático compunha o nome oficial da Alemanha Oriental, a República "Democrática" Alemã.
No caso venezuelano não se trata de um golpe nos moldes típicos latino-americanos: a suspensão dos poderes da Assembleia Nacional é apenas a explcitação de algo que, na prática, já vinha ocorrendo: há meses, o Tribunal Supremo de Justiça assumiu as funções do Legislativo, onde a oposição é maioria desde as eleições de dezembro de 2015. De um ano pra cá, a corte anulou todas as decisões da Assembleia contrárias ao governo, entre elas o referendo revogatório de Maduro, ideia que foi morrendo à mingua. É como se o Supremo, da noite para o dia, assumisse todas as funções do Congresso. Sepulta a independência de poderes.
Nas últimas horas, o governo venezuelano vigia oficiais de médio e alto escalões na tentativa de garantir que as forças armadas, sempre tão fiéis ao chavismo, estão no mesmo barco. Julio Borges, presidente da Assembleia Nacional e líder da oposição, pediu justamente apoio dos militares nesse momento de ruptura. Há sinais - ainda que fracos até o momento - de descontentamento na caserna. Ou seja, dias piores virão.