A operação da Polícia Federal (PF) deflagrada na quinta-feira, parte de uma investigação que apura a suspeita de desvio de verbas de emendas destinadas ao Hospital Ana Nery, de Santa Cruz do Sul, exemplifica uma das muitas aberrações criadas pela distribuição desmesurada de recursos por gabinetes de deputados federais e senadores. Não bastasse o crescente sequestro do orçamento da União pelo Congresso, com pouca ou nenhuma transparência, a farra vem estimulando um negócio que passou a ser conhecido como corretagem de emendas. São intermediários que “captam” os recursos a serem repassados a prefeituras e instituições e ficam com um percentual do dinheiro, depois rateado entre as partes da negociação. Trata-se de uma porta escancarada para malfeitos e pagamentos de propinas. Ter empresas do gênero é proibido aos funcionários do parlamento.
Estava nítido que a insaciabilidade do Congresso por mais recursos a cada ano, casada com a opacidade dos repasses, resultaria em escândalos em série
O jornal O Globo mostrou, em outubro do ano passado, a existência de consultorias com essa finalidade abertas por assessores ou ex-assessores parlamentares, com contratos com 210 municípios. Assim compreende-se, por exemplo, a razão de gabinetes de deputados e senadores enviarem emendas para cidades de Estados que não são os seus. Beneficiar um lugar fora da base eleitoral parecia desafiar a lógica. Agora é um mistério explicado, assim como os motivos da grande resistência do Congresso a regras de rastreabilidade para alguns tipos de emendas.
São casos semelhantes ao de Santa Cruz do Sul. Os principais alvos da PF foram o chefe de gabinete do deputado gaúcho Afonso Motta (PDT), Lino Rogério da Silva Furtado, e Cliver Fiegenbaum, diretor da Fundação Estadual de Planejamento Metropolitano e Regional (Metroplan) e dono da empresa envolvida na intermediação dos repasses. Ambos foram afastados pela Justiça das funções públicas. Segundo a PF, colaboradores do hospital também receberiam valores. O deputado Afonso Motta, que não foi envolvido na operação da PF, ao fim deve ser o maior interessado em que o caso seja devidamente elucidado.
Mesmo com o fim do malfadado orçamento secreto, considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o Congresso resiste, em um embate com a Corte, em adotar normas que assegurem a transparência das emendas. Aos poucos, vários casos com fortes indícios de fraude começaram a emergir em investigações da PF, mostrando desvios de recursos e obras de má qualidade executadas com verbas apadrinhadas por parlamentares. Estava nítido que a insaciabilidade do Congresso por mais recursos a cada ano, casada com a opacidade dos repasses, resultaria em escândalos em série. Existem hoje 20 casos no Supremo de possíveis irregularidades envolvendo repasses de emendas de deputados e senadores.
O orçamento de 2025, que sequer foi votado, prevê excrescentes R$ 50 bilhões para emendas. Faria bem o Congresso se se concentrasse mais em suas funções precípuas de legislar e fiscalizar o governo, deixando de avançar sobre a execução orçamentária, o que faz de forma tortuosa e, em muitos casos, suspeita. Mas é ingenuidade imaginar que abra mão desse poder que ganhou. Ainda há tempo, ao menos, de moderar o apetite e de aceitar regras para enquadrar as emendas nos princípios constitucionais da moralidade, da publicidade e da eficiência.