O pessoal tem falado muito em fake news, ultimamente. Gosto mais de um termo anterior. Já foi eleita a palavra do ano em 2016, anda meio sumida, mas ainda é decisiva para entender o nosso tempo: pós-verdade. Fake news é simplesmente uma lorota que se faz passar por notícia. Acreditar, vai da ingenuidade ou, muitas vezes, da vontade do leitor de acreditar na mentira. A pós-verdade é menos simples. Significa menosprezar se algo é verdadeiro ou falso e valorizar a versão que se consagrou no final das contas. Em uma comparação grosseira: não interessa o que aconteceu na briga. Estava correto quem saiu por cima da discussão.
O complexo de buscar a verdade, em vez de se contentar com a pós-verdade, é que ela não está no "sim" nem no "não", mas no meio do caminho.
Ocorre que, em tempos de pós-verdade, gritar o mais alto possível depois de um acontecimento é tão ou mais decisivo do que o acontecido em si. Porque não basta ter ou não ocorrido, o fato precisa ser reforçado até ser consagrado. No caso da entrevista de Manuela D'Ávila ao programa Roda Viva, a versão ainda em processo de consagração — às custas de muitos memes, posts de seguidores, charges, colunas opinativas e tudo mais — é a de que a candidata foi vítima de machismo cometido por maus entrevistadores. E o complexo de buscar a verdade, em vez de se contentar com a pós-verdade, é que em geral ela não está no "sim" nem no "não", mas em um tortuoso meio do caminho entre os dois.
O cheiro de pós-verdade começa a exalar pela quantidade de comentários sobre o Roda Viva. Das duas uma: ou muito mais pessoas do que eu imaginava dedicam suas noites de segunda-feira às entrevistas da TV Cultura (ou à íntegra no YouTube, depois), ou tem muita gente por aí opinando baseada em trechos editados ou na opinião dos outros. Estou no primeiro grupo. Assisti a todas as entrevistas com pré-candidatos no Roda Viva (até a do João Amoêdo) e o primeiro veredicto sobre o episódio de semana passada é de que a entrevista, mais do que a entrevistada, foi vítima de mau jornalismo.
Em geral é o que acontece quando ele é exercido por militantes em vez de jornalistas. Por algum motivo incompreensível, lá estava um cidadão da campanha de Jair Bolsonaro. Tudo bem, vá lá, se ele ao menos fizesse esforço para ser um entrevistador honesto, e para isso é imprescindível estar interessado nas respostas da entrevistada. Só que, logo na primeira pergunta, Frederico D'Ávila questionou Manuela se a CLT era filha do fascismo de Mussolini. Ora bolas, o que ele esperava que a candidata respondesse? Pouco importa, óbvio. Ele só queria fazer a pergunta e depois gritar mais alto do que ela. Uma espécie de comentarista de Facebook de carne e osso. Tentar debater com militantes como Frederico é como a anedota do pombo enxadrista. Não adianta querer jogar xadrez com quem deseja apenas derrubar as peças, sujar o tabuleiro e voar piando vitória.
Mas não descartemos o bebê com a água da bacia. Essa boçalidade não ocorreu em outros momentos da entrevista, em que a candidata também acusou machismo, posteriormente, por ser interrompida. Só que interromper um político quando ele recheia sua fala com argumentos questionáveis é a obrigação de qualquer jornalista, independentemente do gênero do entrevistado. Uma entrevista — especialmente no formato do Roda Viva, realizada ao vivo e com vários entrevistadores se digladiando com o convidado — não pode ser um alegre jogo de vôlei sobre as ideias do entrevistado, sobretudo de um candidato à Presidência. Isso se chama programa eleitoral. Em uma boa entrevista, a profissão exige que se interrompa para apontar contradições ou falácias. Foi o que ocorreu, por exemplo, quando a jornalista Vera Magalhães citou o atropelo da Lei da Ficha Limpa no caso de elegibilidade de Lula, lei aprovada com o voto da própria Manuela.
Quando digo que a entrevista, mais do que Manuela, foi a vítima é porque Manuela saiu maior da arena do Roda Viva do que entrou. Primeiramente, por ser uma debatedora eloquente. Além de assertiva ou evasiva conforme a conveniência. Mas também porque a era da pós-verdade beneficia políticos com uma militância fiel e bem articulada como a dela, capaz de agitar, assoprar e inflamar uma fogueira a partir de uma chama de machismo. É a consagração do acontecimento. Em 2018, mérito de Manuela e do seu eleitorado. Todavia houve, sim, bons momentos de jornalismo na entrevista, do tipo combativo como é necessário na política. E ele não deve ser queimado no mesmo fogo e tampouco se intimidar com as chamas.