Em março do ano passado, o presidente do Botafogo, Durcésio Mello, apresentou Jorge Braga como CEO do clube. Buscado no mercado, o executivo tinha em seu currículo a fundação e gestão de uma consultoria especializada em recuperar, transformar e aumentar receitas de empresas. Era tudo do que o clube precisava.
Braga comandou uma revolução interna que colocou a casa em ordem, constituiu a SAF e a vendeu para o investidor norte-americano John Textor. Neste domingo, o Botafogo recebe o Juventude em estado de graça. A torcida esgotou os ingressos no meio da semana. O Nilton Santos vai lotar. E Braga estará lá para conferir mais uma amostra do êxito do seu trabalho para transformar o clube. Por WhatsApp, ele respondeu à coluna sobre este novo e Botafogo. Confira.
O senhor chega ao Botafogo em um momento delicado, com o clube na Série B e precisando de reorganização financeira. Como foram os passos iniciais?
A primeira providência foi quebrar o ciclo pernicioso da falta de transparência e credibilidade. Qualquer projeto de reestruturação começa com choque de credibilidade e seriedade. Isso aconteceu através do balanço sem ressalvas, do levantamento minucioso de todas as dívidas e problemas, de um grupo de transição, de trabalho diário para enfrentar os problemas. Com isso, se estabeleceu um plano de quatro passos que era: conter o caixa; alinhar despesas e receitas, não era possível que se continuasse com o desperdício; estruturar as dívidas; conseguir novos investimentos e novas receitas, que na verdade era transformar um ativo estressado e problemático e um produto de futebol. Sempre enxerguei essa possibilidade de o Botafogo ser o maior produto de futebol do Brasil.
Como se sobrevive em uma Série B que não é o lugar do clube, sem as receitas e tendo de buscar resultado esportivo?
Desafiando a lógica tradicional e o status quo do futebol brasileiro, que é "faça investimentos desesperados sem o retorno abalizado, que esse é único caminho para se voltar (à Série A) é investir de forma pouco racional em jogadores". Como um todo, o desafio foi transformar-se em um modelo mental de dono, fazendo muito mais com menos.
Qual foi o maior desafio do Botafogo na Série B?
O maior desafio é difícil, porque foram muitos. Primeiro, passa pela quebra do ciclo pernicioso da falta de transparência e credibilidade, desconfiança da torcida e do mercado de credores. Segundo o choque de cultura, visão de dono, transparência. Aí passa por contratações por RFP (documento usado por empresas que buscam o melhor retorno possível na contratação de novos fornecedores), absoluta transparência na comunicação com o conselho de administração, na tomada de decisões com funcionários e parceiros.
Em paralelo à retomada esportiva, o Botafogo passou a adotar um regime centralizado de dívidas, iniciou o processo de constituição da SAF e encaminhou a venda dela para um investidor. Como foi esse processo?
A lei da SAF é um instrumento poderoso para quem tem o modelo mental correto, para que quer fazer o certo, cumprir todas as etapas. Não faz sentido vender um clube em dificuldades financeiras, sem as contas saneadas, sem tranquilidade ou previsibilidade de pagamento, sem segurança jurídica para o investidor. Entendíamos que fazer isso era depreciar o valor. Era nem sequer conseguir um investidor adequado, se não fizéssemos o trabalho de casa. Nesse sentido, a estruturação de dívidas, a estruturação gerencial, redução de níveis e o desafio de subir sem ter uma das três maiores folhas salariais da Série B foram parte desse projeto de adotar os princípios da SAF.
A SAF do Botafogo e a transação dela têm alguma distinção em relação às que vemos em grandes clubes, como nos vizinhos Vasco e o Cruzeiro?
A SAF do Botafogo cumpriu rigorosamente todos os passos das melhores práticas de benchmarking do mundo para reestruturação de empresa. Você começa com choque de credibilidade, mudança de cultura, redução eficiente de despesas e controle, virar dono do caixa, reestruturação das dívidas, honrar pagamento, folha de jogadores em dia, cumprir o que promete. Na sequência, estruturamos esse produto com garantia jurídica, com modelos muitos claros de pagamento e retorno, com identificação do valor antes de procurar o investidor. Fizemos tudo isso, o que garantiu essa transação do Botafogo, que tem números mais interessantes do que negociações feitas na Europa.
A SAF era a única saída do Botafogo?
Sim, era a única saída. Mas não a SAF de papel. O que tem de base no conceito da SAF: uma unidade de negócio, com controle de gestão séria, pragmática, com benchmarkings cruciais, onde seus gestores têm responsabilidade civil e criminal frente a uma S/A. Onde você transforma um clube com problema em uma empresa saudável. Mais do que três letras, o conceito da SAF é de profissionalização, gestão e transparência. Nesse sentido, sem dúvida nenhuma a SAF era a única saída para o Botafogo.
Como tem sido esses primeiros meses com John Textor?
Temos vivido de novo uma mudança de cultura muito grande. Um novo ciclo de transformação. Na primeira fase, nosso desafio era caixa, dinheiro. Toda decisão, estratégica financeira, era para otimizar a entrada de caixa. Com esses problemas equacionados, a visão do investidor e o problema da SAF são outros. É uma grande startup que precisa buscar valor. Poder ser um produto diferenciado, mundialmente reconhecido, onde as decisões não sejam só de fluxo de caixa, mas especialmente de geração de valor para torcida, para o acionista e para o futebol brasileiro.
Qual o passo a passo dele para o clube e o planejamento estratégico para cinco, 10 anos?
Como qualquer mudança profunda de cultura, de interlocução, os primeiros dias têm sido de muito aprendizado e ajuste, de acomodação de expectativas e muito trabalho. Na prática, é tirar uma startup do zero, elaborar sistemas financeiros, contábeis, de pagamento, estrutura, escolher pessoas, ver remuneração, criar modelo e gestão do futebol. Há crescimento da quantidade de atletas, a criação de um time B. Só para ter uma ideia, a quantidade de jogadores hoje que temos, entre feminino profissional e sub-20, masculino, times A e B e os subs, nos exige que tenhamos de oito a 10 campos disponíveis para treinos e atividades. O Botafogo mal tinha dois campos. Precisa agora de oito de nível internacional.
O Botafogo, neste momento, já pode sonhar com a primeira parte da tabela, ou o objetivo esportivo neste 2022 é de permanência na elite?
Esse é o grande desafio. Tem de encurtar o tempo, porque nossa própria expectativa, a do investidor e a da torcida, que foi muito amplifica pela chegada do John (Textor), é ter um campeão em todos os sentidos, desde serviço, tecnologia, gente e no campo esportivo.
A SAF é um caminho sem volta para o futebol brasileiro?
Não é a chegada da SAF, é o case Botafogo que é a transformação do futebol brasileiro. Somos a materialização da transformação. Essa é a segunda transformação pela qual passa o Botafogo. A primeira foi se viabilizar, com a reestruturação. Esta segunda é se tornar um produto mundial. Não é só da transformação do Botafogo que tenho a oportunidade de participar, é o redesenho do futebol brasileiro. O mundo inteiro acompanha o que acontecerá aqui no Botafogo. É uma transformação não só para a gente, para para o futebol.
A chegada de investidores e a ascensão das SAFs serão o motor das transformações no futebol brasileiro?
Passou da hora de o Brasil ter uma liga. Em todos os mercados do mundo nos quais isso aconteceu, as receitas dos clubes, a visibilidade, a responsabilidade, o fair play, tudo ficou mais profissional. O Brasil não pode seguir de costas para o mundo.
O senhor acredita que a chegada de novos atores no mercado brasileiro, com uma visão de negócio mais ampla e percepção da indústria do futebol, poderá ser decisiva para a criação da Liga?
Os desafios são muitos, historicamente, tem uma questão de maturidade, de pensar no todo e não individualmente. Entender que dentro de campo todos os times são ferozes concorrentes, mas, fora, não. Há uma série de atividades e ações que podem ser feitas em conjunto. Se isso não mudar, se essa cultura não evoluir, teremos uma dificuldade grande para fazer a liga andar.