Lionel Messi bem poderia estar agora em um bangalô fitando o mar translúcido das Ilhas Maldivas. Ou curtindo com a família as férias em um hotel de luxo na Patagônia. Na verdade, Messi poderia estar onde quisesse. Mas, para seu azar, ele quer estar com a seleção argentina. Busca de forma desesperada vencer com ela, como se isso fosse o degrau que lhe falta para chegar ao Olimpo dos craques. Neste domingo (23), Messi pisará na Arena para um constrangedor confronto direto com o Catar por vaga nas quartas de final da Copa América.
Messi, por tudo que faz ao futebol, não merece isso. Ele é vítima de uma Argentina cuja seleção é o extrato de uma histórica – e perigosa – química de futebol e política. Entender a crise da seleção e de uma das camisas mais pesadas do futebol exige ir além do campo. Exige entrar nos gabinetes e abrir armários que guardam conexões entre dirigentes, governantes e barras bravas.
Um exemplo disso mais exponencial pode ser o Fútbol para Todos (FPT), o programa de governo de Cristina Kirchner que comprou os direitos de transmissão do futebol no país em 2009. Criou um canal de TV para passar as partidas e despejou milhões de dólares nas contas da AFA, estimulando a interiorização do futebol. O Campeonato Argentino, então, virou um monstrengo com 30 clubes e saiu do eixo Buenos Aires, Rosário e Córdoba para absorver clubes de províncias mais afastadas.
O FPT durou até 2017, quando o governo Maurício Macri fechou as torneiras. Macri, aliás, foi o presidente exitoso que recolocou o Boca como superpotência do continente. Comandou o clube entre 1995 e 2007, reformou a Bombonera e conquistou 17 títulos. Fez do seu sucesso em La Boca o trampolim para chegar à prefeitura de Buenos Aires e, depois, à Casa Rosada. Uma troca de passes aberta, como se vê, entre futebol e política.
Essa busca pelo poder passa pela AFA. Presidida com mão firme por 35 anos por Julio Grondona, virou palco de disputa política renhida a partir de sua morte, em 2014. No final de 2015, sem consenso para escolher o novo presidente, os clubes fizeram eleição entre os dois postulantes, o interino Luís Segura, afilhado de Grondona, e Marcelo Tinelli, famoso apresentador de TV, homem forte do San Lorenzo e que em seu programa fazia oposição a Macri.
Eleição com voto a mais
Estavam habilitados a votar 75 dirigentes. Abertas as urnas, surpresa: havia 76 votos, 38 para cada um. O governo fez perigosa intervenção na entidade, e a Fifa desceu em Buenos Aires para tomar as rédeas. Organizou a eleição e atuou na criação, pelos clubes, da Superliga, responsável hoje pelo campeonato e pela venda dos direitos de TV para conglomerados norte-americanos.
A intervenção só acabou em março de 2017, quando a Argentina patinava nas Eliminatórias. Claudio “Chiqui” Tapia foi eleito com o voto de 40 de 43 dirigentes. Tapia, à época, ocupava o cargo de diretor da Ceamse, estatal que trata os resíduos de Buenos Aires e mais 34 distritos do entorno. Ele enfrentava denúncia de uma juíza por não cumprir com suas tarefas e encaixar dirigentes de clubes pequenos em cargos da estatal. Antes disso, nos anos 1980, havia sido funcionário de uma das empresas da família de Macri. Mas sua força política maior vem do sogro, Hugo Moyano, presidente do Independiente e do Sindicato dos Caminhoneiros da Argentina, cujas ações param o país. Moyano, além de sogro de Tapia, é um dos seus vices na AFA.
Esse caldo político nos gabinetes, evidentemente, deságua na seleção. A vaga na Copa de 2018 só veio na última rodada e depois de três técnicos: Tata Martino, Bauza, que durou seis jogos, e Jorge Sampaoli. A Argentina entrou em campo fora do Mundial contra o Equador. Levou o 1 a 0 e foi salva por atuação de gala e três gols de Messi.
Na Rússia, uma nova crise. Os jogadores entraram em conflito com Sampaoli e ditaram os rumos no vestiário. Venceram a Nigéria e evitaram a eliminação na primeira fase. Mas caíram para a França nas oitavas. Ficou famosa a reunião dos líderes do grupo com o técnico em Bronnitsy, o QG argentino na Rússia. Depois do 3 a 0 para a Croácia, emparedaram Sampaoli e pediram voz nas decisões. Tapia, que assistia a tudo, apenas alertou o técnico de que era melhor ceder.
Passado um ano do vexame na Rússia, a Argentina segue sem rumo. Lionel Scaloni, da sub-20 e auxiliar na Copa, assumiu de forma interina na volta da Rússia. Seria até dezembro. Tempo para, talvez, a AFA convencer um nome do quilate de Diego Simeone ou Mauricio Pochettino a embarcar no projeto. O ano virou, e o mandato de Scaloni foi prorrogado até a Copa América.
Decisões equivocadas
O grande feito do interino foi convencer Messi a voltar, em março. Novato no cargo, escalou 11 times diferentes em 11 jogos. Usou 41 jogadores como titulares. Inseguro, toma decisões equivocadas. Aguero e Di María foram titulares na estreia, viraram reservas e foram chamados para desatar o nó contra o Paraguai no segundo tempo. Como na Rússia, houve reunião quente do grupo com o técnico. O 1 a 1 com os paraguaios saiu barato.
Neste domingo, a Argentina faz uma decisão com o Catar. A desordem coletiva é tamanha que se torna um risco cravar como virtual vencedora. Mesmo que Messi esteja em campo. Mas ele, nesse tango sem fim, virou a ponta de um emaranhado complicado de ser desfeito.