A trajetória de 220 anos da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre se confunde com a história da capital gaúcha. A instituição nasceu no Brasil Colônia, passou pelo Império e chegou à República. Na parte alta do Centro Histórico, antes isolado, o hospital foi cercado pelos edifícios da cidade que se expandiu. O complexo, que já teve o trabalho de escravos, realiza hoje cirurgias robóticas, com as técnicas mais avançadas da medicina.
Do livro Santa Casa 200 anos: caridade e ciência, de Sérgio da Costa Franco e Ivo Stigger, reúno abaixo 10 curiosidades dos primórdios do hospital.
Atestado de nascimento
As práticas primitivas de medicina chegaram ao Rio Grande do Sul com as organizações militares. Ao cirurgião cabia a tarefa de tratar fraturas, realizar amputações de membros e fazer curativos de ferimentos de combatentes. Os civis só podiam ter atendimento em casa, pagando serviços dos cirurgiões e sangradores.
Em 19 de outubro de 1803, com licença do príncipe regente Dom João, a Câmara de Porto Alegre escolheu os primeiros dirigentes do Hospital da Caridade. É a certidão de nascimento da Santa Casa. Em 23 de outubro, o governador da capitania, Paulo José da Silva Gama, foi escolhido para provedor.
A demorada construção do hospital
A construção do hospital começou em 1804. Em 1820, em passagem por Porto Alegre, o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, descreve a obra do hospital sobre um dos pontos mais elevados da colina, fora da cidade. Em 1º de janeiro de 1826, a Santa Casa passa a receber enfermos nas duas primeiras enfermarias. O presidente da província, José Feliciano Fernandes Pinheiro, de acordo com as crônicas da Misericórdia, conduziu, em seus braços, o primeiro doente ao leito.
Na década de 1860, foi concluído o "quadrado", o prédio do atual Hospital Santa Clara, o primeiro do complexo da Santa Casa.
Escravos da Santa Casa
Em uma sociedade escravagista, a instituição também usou o trabalho de escravos. Em reunião da Mesa Administrativa em 1822, o irmão responsável pela assistência aos prisioneiros da Cadeia ficou encarregado da disciplina do primeiro escravo da Irmandade. A Santa Casa alugava, comprava ou recebia em doação. A cozinha e o transporte de enfermos estavam entre as tarefas dos escravos.
O atendimento da Irmandade era exclusivo para pobres livres. Os escravos deveriam receber assistência de seus senhores. Em alguns casos, a Santa Casa recebeu doação de escravos doentes. Em 1844, documento aponta que só seriam aceitas doações após exames para atestar o bom estado de saúde.
Cemitério
Não restou vestígio do primeiro cemitério organizado junto à Santa Casa. Ata da Mesa Administrativa, em 30 de abril de 1826, revela que seriam abertas tumbas para Irmãos e demais pessoas que quisessem ser enterradas, já que era destinado anteriormente apenas aos padecentes, ou seja, os condenados à morte.
Em três anos, o pequeno cemitério ficou sem vagas. Outro campo santo foi aberto junto ao hospital. Em 1850, a Santa Casa começou enterros em um terceiro cemitério, onde está até hoje no bairro Azenha.
Assistência aos enforcados
Seguindo a tradição de Portugal, a Misericórdia recebeu tarefa de assistência material e moral aos condenados à forca. Em 4 de dezembro de 1821, a Junta de Justiça de Porto Alegre decretou a primeira condenação à morte. O réu foi o escravo Joaquim, africano de nação Mina, morto três dias depois da decisão do tribunal criminal.
A Santa Casa cuidava das últimas vontades do sentenciado. O condenado era levado da Cadeia até a capela do Senhor dos Passos, acompanhado da força de segurança, do capelão da Santa Casa e de um representante da Irmandade. Depois de uma missa, o criminoso seguia pela Rua da Praia até o Largo da Forca.
Primeiros médicos
Pelos documentos, em 1826, o primeiro citado como responsável pela prática de medicina na Santa Casa foi o cirurgião-mor Ignacio Joaquim de Paiva. Ele era antigo cirurgião militar, sem formação acadêmica. Outro nome citado nos primórdios é Manoel Antônio de Magalhães, cirurgião do banco, o que corresponde hoje à emergência.
Em 1829, foi contratado o médico mineiro Marciano Pereira Ribeiro, que também seria presidente interino da província no período da Revolução Farroupilha.
Loterias
O governo imperial, em 1826, concedeu à Santa Casa o privilégio da extração de dez loterias para arrecadação de recursos para manutenção de atividades. A primeira correu em abril de 1828 e a última, em 1835, antes do início da Revolução Farroupilha.
Trote muito antes do telefone
Um episódio de 1835 revela como os trotes são antigos. Fernando Maria Rabello, 20 anos, mandou amigos pedirem socorro na Santa Casa. Ele estaria ferido, prestes a morrer. O hospital mandou dois escravos com a cadeirinha de transporte até a Rua Clara, atual Rua General João Manoel. Encontrado com a roupa ensanguentada, foi levado para atendimento. Sem médico na Santa Casa, disse que queria apenas os sacramentos antes de morrer. O malandro avisou ainda que gostaria de ter seus últimos momentos de vida em casa.
Lá foram outra vez os escravos com a cadeirinha pela Rua da Praia, onde Rabello pulou e saiu correndo. A brincadeira não ficou impune. Um júri o condenou a 40 dias de prisão pela molecagem.
Ponte levadiça
Durante o cerco à Porto Alegre pelos farroupilhas, a Santa Casa sofreu com o desabastecimento. Em documento de 1837, é citada a impossibilidade de fornecimento diário de carne fresca e galinhas. Em função de entrincheiramento da cidade, foi fechado e pregado o portão nos fundos do hospital. Posteriormente, foi colocada ponte levadiça, permitindo abertura para jogar fora a sujeira, buscar água e acessar o cemitério.
Roda dos expostos
Em 1837, com a cidade sob sítio na Revolução Farroupilha, a Assembleia Provincial transferiu à Santa Casa a responsabilidade de criar e alimentar os expostos, os recém-nascidos abandonados. É a origem da Roda, que funcionou até 1940.
Uma roda de madeira ficava com abertura para a via pública. Nela, era colocada a criança. Com o giro da roda, o bebê entrava na Santa Casa. Uma campainha soava.
Até os oito anos, a criação era feita por "mães criadeiras", que recebiam pagamento pelo serviço. Em 1880, no auge da Roda, foram 45 expostos.