O horror tem o poder de nos despertar da letargia, mas nem assim vemos a luz do sol. O massacre de Manaus fez até o papa Francisco nos alertar sobre o abismo à nossa frente, mas continuamos inertes, como se a violência caísse das nuvens tal qual a chuva, sem nossa interferência.
Para nos inquietar, não é preciso recorrer à luta entre facções do narcotráfico ou à corrupção do poder no Amazonas, que inclui desembargadores e juízes. Nem ao desdém de Michel Temer, para quem o crime foi só "pavoroso acidente". Basta a aberração que se multiplica aqui no Rio Grande. Degolas e corpos esquartejados nos fazem regredir à sanha primitiva da Revolução de 1893. Lá, a ignorância fanática urdia a matança com igual estupidez.
De nada vale construir mais presídios e trancafiar criminosos que, logo, voltarão à rua doutorados em ódio e perversão. Nossas prisões, como a de Manaus, não são penitenciárias que recuperem o criminoso através da penitência educativa e do trabalho. São academias do delito.
Ou alguém crê que combater o crime é reunir assassinos, narcotraficantes, ladrões e similares em celas diminutas para trocar experiências, dia e noite?
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Talvez a natureza humana leve ao crime, tal qual Caim e Abel mostram como fábula ou como História. Os preceitos religiosos e as leis surgiram daí para coibir a maldade.
Mas a violência revestiu-se de perversão profunda nas últimas décadas, à medida que a sociedade de consumo se pôs acima da teologia, da ética e da lei.
Na ânsia perversa de acumular riqueza e, a cada minuto, comprar mais e mais (enchendo-nos de quinquilharias para levar no caixão), tudo vale. Roubar tornou-se sofisticada "especialização". Roubam grandes e pequenos. Os políticos e empresários desmascarados na Lava-Jato são ladrões da mesma laia que os de 1986-87 aqui no Rio Grande, até hoje impunes, que furtaram R$ 850 milhões da CEEE. E não diferem do assaltante de rua.
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Já estávamos habituados ao roubo dos "grandes" da política e do setor privado, quando a Lava-Jato nos despertou para as raízes e revelou as causas – o conluio entre grandes empresas e partidos políticos.
E as causas do crime perverso que mata, degola e esquarteja? Ou que estupra para matar?
Antes, lá por 1950, os briguentos matavam para "ser homem" e, na bravata, simular bravura. Exceto em casos de demência, a crueldade máxima era matar por vingança. Isto era execrável, mas escondia a visão moral (errônea) de "vingar um crime" com outro crime. Havia certo respeito ao "não matar" que a teologia e a lei impunham.
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No país em que tudo pode, e em que "é feio" haver normas de comportamento e de convivência, tudo hoje é diferente. A libertinagem substituiu a liberdade. O professor já não aponta o erro do aluno, pois "fere a dignidade". Quem sabe não pode ensinar a quem nada sabe. Os pais não podem reprender os filhos e transmitir-lhes modelos de vida. A correção é malvista.
A regra é não haver regras, é chafurdar na balbúrdia, ouvir música como se fosse trovão, gritar grosserias em altos uivos em vez de debater, amancebar-se com o individualismo sem pensar nos demais.
O vulgar grotesco da pornografia substitui a beleza do amor e do erotismo. A maioria dos meios de comunicação, em especial TV, rádio e, agora, as "redes", buscam adeptos através do escândalo, da baixaria ou da mentira reles. As frases da publicidade e da propaganda suplantam o saber científico.
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A noção (falsa) de êxtase e prazer instantâneos da sociedade de consumo faz a droga substituir a oração, a meditação, a psicanálise e tudo que leve ao transcendente, inclusive poesia e música. E o narcotráfico se ergue como poder maior, armado e acima dos governos.
O mercantilismo se apodera do ensino e cria o paradoxo de também deseducar. E o crime dá gargalhadas e reina como monarca absoluto.
No país do tudo pode, o "plano de combate ao crime" do ministro da Justiça prevê, agora, apenas mais verbas para presídios e para a polícia. As causas do horror continuam intocáveis, como se o crime fosse insensata obra eterna, da qual não podemos nos livrar.
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