O mundo é cruel com quem perde, na vida ou no esporte. A Humanidade, inclusive, sacraliza alguns provérbios do demônio, nascidos para outros fins. Um deles é "A história é escrita pelos vencedores." É um ditado duplamente perverso. Primeiro, porque é mentira. A verdade não está só do lado de quem ganha. No esporte, especialmente, o limite entre o triunfo e o desterro pode ser mero acaso, um lance de sorte, uma intempérie qualquer. O outro motivo é ainda pior, pela injustiça. A frase é do escritor britânico Eric Arthur Blair, mas fiquemos com o pseudônimo que o consagrou: George Orwell. Toda sua obra é dedicada a lutar contra o totalitarismo, sempre na defesa da liberdade e da igualdade. Olhando por esse prisma, o tom crítico de "A história é escrita pelos vencedores" é óbvio.
É um grito de resistência, com o punho cerrado erguido no meio da rua mirando os opressores armados a metros de distância. Só que, com o tempo, a frase se descolou da obra, e o uso comum passou a traduzi-la como "se você ganhar, a razão é sua: sirva-se". Pensando bem, se tanto a Bíblia quanto o Corão estão cheios de versículos pacíficos e inocentes que, tirados de contexto, viram armas de guerras insanas, não haveria de ser diferente com o velho e bom George após sua morte, em 1950.
O fato é que há outros provérbios distorcidos muito usados no esporte, mas este é o suficiente para o que nos moverá neste fim de semana. A segunda-feira (26) será inundada de narrativas sobre o Gre-Nal deste domingo, às 18h. Todas, podem apostar, partindo da seguinte premissa, mesmo em caso de empate: quem ganhou o Gre-Nal?
É aí que entra a lógica perversa. O roteiro vitória corajosa/derrota covarde virou tão absurdo, reforçando narrativas subjetivas positivas de quem ganha e destrutivas de quem perde, que nem o empate impedirá a frase distorcida de Orwell de dar o tom na Província de São Pedro, da qual somos todos filhos. Então, quero escrever para o derrotado no Gre-Nal. Não caia na armadilha da Copa Gre-Nal, por mais que seja um dos maiores clássicos do mundo segundo a FourFourTwo, revista inglesa que, no seu ranking de rivalidades, só colocou a de Boca Juniors e River Plate à frente do Gre-Nal em toda a América do Sul.
A temporada não termina no Gre-Nal. Vale também para o vencedor, que não pode se enganar. O Inter não terá, se ganhar, o selo definitivo de que está pronto. Nem o Grêmio de que os defeitos até aqui não passavam de intriga da imprensa.
Dessa vez, quero me ater ao derrotado, seja na frieza do resultado ou nas leituras a partir de um empate jogando menos. Só para oferecer minha cabeça de mão beijada aos ogros das redes sociais, a história dos Gre-Nais ensina que há derrotas redentoras. Desde que se saiba por que perdeu, é claro. Em 1975, o Grêmio fez 3 a 1 no Beira-Rio, na fase de classificação, mas perdeu o Gauchão e ainda viu o Inter ser campeão brasileiro. Como seria se o Inter tivesse goleado naquele Gre-Nal? A soberba tomaria conta? Não? Nunca saberemos. Em 1983, o Grêmio perde um Gre-Nal por 1 a 0 em julho e o Gauchão escorre de vez pelo ralo em meados de outubro. Em dezembro, alcança o topo do mundo em Tóquio, com Renato, De León e Mário Sérgio beirando a perfeição contra os alemães do Hamburgo.
Até hoje Tinga diz que uma reunião dos jogadores após o Inter perder o Gauchão de 2006 diante de um horroroso Grêmio pós-Série B foi o ponto de partida para as glórias da Libertadores e do Mundial no mesmo ano. O foco e o comprometimento se tornaram indestrutíveis naquela reunião. Por mais que o dia seguinte tenha sido de corneta no bar, no trabalho ou na escola, a pergunta definitiva é: aquela derrota no Gre-Nal foi fim ou começo? "Boa" ou "ruim"? O triunfo em Gre-Nal inebria. Pode virar canto de sereia. O Inter subjuga o Grêmio no primeiro semestre de 2016, mas é rebaixado no segundo. O Grêmio vence no Beira-Rio, empata na Arena e conquista tetra em 2021, mas depois afunda em seu terceiro rebaixamento. Se a derrota em Gre-Nal os tivesse alertado no Gauchão, será que Grêmio e Inter teriam sido rebaixados?
A história não é escrita só pelos vencedores. Se vivo fosse, George Orwell talvez acrescentasse esse "só" para impedir leituras rasas que a falta de inteligência foi produzindo ao longo do tempo. O Gre-Nal é algo tão mágico, intenso e envolvente, é um jogo tão grande e encantador, que é capaz de converter o derrotado em vitorioso logo ali adiante, pela necessidade de dar uma resposta à tatuagem que é perder clássico. Há, sim, sabedoria, gestos de coragem e história para contar também no lado de quem perde. Eis meu afago. Minha carta ao derrotado do Gre-Nal.