Os primeiros jogos provaram sem contestação que não existe nada parecido com uma Copa do Mundo. É por isso que um craque como Messi, experiente, 35 títulos na carreira, seis Bola de Ouro da Fifa, foi tomado de paralisia na estreia. Sem nada a perder, leves como os falcões do deserto, os sauditas venceram. Frieza, foco e disciplina são características marcantes do povo alemão. Pois a sua seleção desmoronou quando o Japão empatou e, dali em diante, parecia o União Frederiquense.
A câmera fechava no rosto de Hans Flick, técnico sete vezes campeão em dois anos no Bayern de Munique, e seus olhos denunciavam um menino assustado. Tensão. Expectativa. Ansiedade. É assim também com jornalistas que cobrem ou trabalham com futebol, transferindo para o nosso contexto, é claro. O ser humano vai criando os mais esquisitos mecanismos para lidar com tanta adrenalina e evitar naufrágios como o dos argentinos e alemães.
Aqui no Catar, somos em 16 na equipe da RBS. O Géder Fernando, por exemplo, que nos põe no ar mexendo em aparelhos incompreensíveis, cheios de botões, telas e chaves. Ele vê desenho animado para relaxar. Branca de Neve e Pepe Legal.
O Lucianinho Périco viu a porta do banheiro entreaberta e fotografou Maurício Saraiva nu na banheira, após um dia extenuante. Postou a foto no nosso grupo secreto de mensagens, o Missão Doha. Por enquanto, ainda não vazou.
O Rodrigo Oliveira é viciado em Coca-Cola zero. Quando está sem uma garrafinha na mão, desconfio que é alguém parecido, e não o próprio Rodrigo. Ele nunca se perde. Se você largá-lo de helicóptero no meio da selva amazônica à noite, ao raiar do dia ele encontrará a civilização e terá entrevistado líderes indígenas de tribos desconhecidas. Mas aqui é Copa, amigo. Após a goleada da França sobre a Austrália, esperávamos por ele para ir embora. De repente, nova mensagem no Missão Doha.
— ALGUÉM ME AJUDA — Assim, em maiúsculas e sem ponto final. Mandou dois áudios. Ninguém manda áudio no grupo. Era grave.
Ele estava dentro do estádio, em um porão sem sinalização. Mandamos a nossa localização. Tudo certo, tirando a cara de pânico do Rodrigo. Mas e quando surge o imprevisto e você está longe de casa? Alice Bastos Neves e a Kelly Costa estiveram no limite de não embarcar para Doha. Por um erro do sistema, elas foram identificadas como homens no Hayya Card, que é o mais importante documento de identificação no Catar. Perca o escrúpulo, nunca o Hayya Card.
— Aqui diz que a senhorita é homem. M, de masculino.
— Não, eu sou mulher — respondeu a Kelly no balcão da Catar Airways. Em São Paulo.
Uma hora e meia depois elas embarcaram, mas precisou liberação do comitê organizador. Nunca tinha visto a Alice irritada. Depois ela foi a de sempre, dançando e cantando no metrô, na rua ou na escada rolante, que uma mulher vitoriosa como ela, capaz de vencer o câncer, tem mais é de celebrar a vida a cada minuto. Mas ali, senhores, eu vi a Alice brava.
O Pedro Ernesto, quando pode, tira o sapato e fica de pé no chão. Parece um sheik. Ninguém se opõe. Apelidamos o conjunto de sofás onde nos reunimos no IBC de Largo Pedro Ernesto.
Os motoristas do shuttle, ônibus da Fifa para credenciados, são muito devagar. É um suplício, porque a ansiedade te faz querer chegar a qualquer lugar o mais rápido possível, para além dos horários da programação. Então vamos até a parada torcendo pelo nepalês Hari Bahadur Karki. O apelidamos de Verstappen. Se for ele o piloto, apertem os cintos.
Fiz o teste e saí da sala da Gaúcha na hora do grito de gol do Lucianinho. Por Deus, dá para escutar no meio do Complexo. É um fenômeno. É adrenalina. É Copa. Prometo gravar e postar. Deve ser por isso que, no ônibus, se na conversa surge o nome de um cantor, cantora ou banda, o Lucianinho sai cantando alguma música desse artista. Dia desses o Verstappen leva um susto e quase bate no carro da frente. E eu? Sou um cara calmo, mas cometi um desatino perigoso.
Atravessando uma rodovia daqui, um sujeito acelerou e ainda buzinou. Ele vestia a kandura, tradicional manto árabe. Puxa, o sujeito viu aquela procissão de gente com mochila e equipamento. Custava parar, como muitos fazem? Covardemente, gritei algo que ele não entenderia mesmo, mas esqueci e ergui o dedo médio da mão esquerda. O carro — carro não, nave espacial — diminuiu a velocidade. E se fosse um parente de Tamin Bin Hamad Bin Khalifa Al Thani, o emir do Catar?
O meu parceiro de quarto e muitas coberturas, o Leonardo Oliveira, acordou pedindo licença para usar o banheiro. Disse que talvez demorasse, pois precisava cortar o cabelo. Só que o Léo é totalmente careca. Talvez tenhamos de controlar melhor a ansiedade nessa aventura no deserto. Ou não. Tem muita Copa pela frente. Mas fiasco como dos alemães e argentinos na estreia, aí não.