No fim do ano passado, ao observar duas pinturas do século 16 que retratam o artista renascentista Michelangelo, o biólogo Deivis de Campos percebeu artérias dilatadas nas têmporas do gênio italiano. Professor de anatomia na Universidade Federal de Ciências da Saúde (UFCSPA) e na Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), Campos decidiu investigar.
— Na literatura (bibliografia sobre o artista), vi que não havia descrição desse detalhe. Analisei outras obras que representam o artista no período, como uma escultura feita no fim de sua vida em que ele era representado com essa dilatação — diz Campos, que é gaúcho de Venâncio Aires.
Na avaliação do professor, o sinal clínico soou compatível com a doença de Horton, uma doença vascular marcada pela dilatação das artérias temporais. Ao ler a biografia de Michelangelo, escrita ainda no século 16 pelo pioneiro da história da arte Giorgio Vassari, Campos percebeu a descrição de outros sintomas compatíveis com o diagnóstico: episódios de febre e depressão, além de cegueira na velhice.
— A doença de Horton foi descrita na década de 1930 por um médico norte-americano que identificou pacientes com dores de cabeça e articulares, febre e fadiga, além de cegueira. Alguns autores dizem que ela é autoimune, surge do nada, e a partir dos 50 anos se evidencia. É uma vasculite, que causa destruição das artérias e pode levar a um AVC (Acidente Vascular Cerebral). Não sabemos a causa da morte de Michelangelo, mas o diagnóstico leva a crer que pode ter a ver com essa vasculite — diz o professor, que ressalta que a doença ocorre mais em populações europeias.
A partir do achado, Campos publicou em fevereiro deste ano um estudo sobre a origem das debilitações neurológicas do artista em sua velhice, a partir do diagnóstico da Doença de Horton, feito por meio dos retratos e esculturas do artista e suas informações biográficas. O estudo saiu no periódico Neurological Sciences, publicado pela Springer Nature.
Michelangelo morreu em 1564 aos 88 anos, em Roma, e deixou obras inacabadas por conta de problemas de saúde. Uma de suas obras mais famosas é A Criação de Adão, uma pintura feita no teto da Capela Sistina, na residência oficial do Papa, no Vaticano, que retrata um encontro entre o deus cristão e Adão, uma espécie de “primeiro homem” da mitologia judaico-cristã.
Anatomia do renascimento
Ao longo dos últimos dez anos, Campos calcula já ter publicado cerca de 15 artigos científicos sobre obras de Michelangelo, inclusive sobre representações anatômicas ocultas na arte do gênio renascentista.
Segundo o biólogo, estudos seus, como o que diagnosticou o artista com a doença de Horton, fazem parte de uma linha de pesquisa em “diagnóstico visual”. A área ajuda na realização de diagnósticos em casos nos quais não há material biológico disponível, nem como exumar um corpo para se fazer exames bioquímicos.
— Isso é importante dentro da área médica e essa linha começou a fazer parte do currículo da medicina para cultivar no estudante um olhar crítico que o capacite a um exame visual detalhado do paciente. Muitas vezes, médicos não têm um laboratório a seu dispor e precisam ter um olhar clínico para perceber detalhes. Esse tipo de diagnóstico visual tem sido feito a partir de percepções e análises de detalhes físicos dos indivíduos — explica.
Não sabemos a causa da morte de Michelangelo, mas o diagnóstico leva a crer que pode ter a ver com essa vasculite
DEIVIS DE CAMPOS
Biólogo e professor da UFSCPA e Unisc
Como artistas da época do Renascimento estavam muito preocupados na época em representar o corpo humano com exatidão, com proporções e formas fidedignas, hoje é possível identificar doenças em pessoas representadas por meio de sinais clínicos como pupilas e artérias dilatadas, ou bulbo ocular aumentado.
— Uma vez que o detalhe tá ali e temos indício na literatura de que o personagem em questão apresentava sintomas da doença investigada, já há fortes indícios de que de fato ele poderia ter aquelas alterações e patologias. É um diagnóstico visual feito a partir dessas informações — diz Campos.
O professor explica que seu interesse pela obra de Michelangelo começou pela sua paixão por ilustrações médicas antigas e história da anatomia. Os primeiros livros da área com desenhos do corpo humano datam de por volta do século 16 e era comum que artistas estudassem anatomia para aprender a como pintar pessoas. O próprio Michelangelo e Leonardo da Vinci, explica o professor, dissecaram corpos.
— Se não houvesse na literatura nenhum autor falando que o Michelangelo tinha problemas de visão, quadros de febre, comportamento depressivo, com uma fase da vida em que escreveu poemas e sonetos exaltando a melancolia, situações típicas de alguém depressivo, seria difícil fazer com que essa teoria da doença de Horton se sustentasse — explica.
Quem foi Michelangelo
Michelangelo di Lodovico Buonarroti Simoni (1475-1564) foi um pintor, escultor, poeta, anatomista e arquiteto italiano, tido como um dos principais gênios do Renascimento, ao lado de figuras como Leonardo da Vinci, Giordano Bruno e Maquiavel. O período marcou, na Europa, a valorização de ideias da Antiguidade Clássica, como a arte e a filosofia, em contraposição ao dogmatismo da Igreja Católica.
Entre as principais obras do artista estão as esculturas Pietà (1547) e Davi (1504), além dos afrescos pintados na Capela Sistina, como A Criação de Adão (1508-1512), no teto da capela.