
Determinado há exatos dois anos por uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o gradual fechamento de hospitais psiquiátricos de custódia, os chamados manicômios judiciários, está em andamento no Rio Grande do Sul. O Instituto Psiquiátrico Doutor Maurício Cardoso (IPF), em Porto Alegre, onde eram internadas pessoas com doenças mentais e em conflito com a lei, já não recebe novos casos desde junho de 2023.
Atualmente, 109 pacientes seguem no IPF, dos quais 35 estão em processo de alta progressiva, conforme dados do Poder Judiciário da última terça-feira (18). Outros 74 permanecem internados em tempo integral. O prazo para que eles sejam libertos ou encaminhados ao sistema de saúde para tratamento é 30 de novembro de 2026, conforme acerto entre o CNJ e o Tribunal de Justiça (TJRS).
— Parte permanece no IPF porque entendemos que ainda não há, na região de origem dessas pessoas, uma estrutura suficiente, inclusive em termos de segurança, para recebê-las — afirma o juiz-corregedor Bruno Jacoby de Lamare, coordenador do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (GMF/CGJ), do TJRS.
Desde o início do processo de fechamento, 102 pacientes deixaram as dependências do IPF e voltaram ao convívio social: tiveram as medidas de segurança de internação extintas ou convertidas para o cuidado de saúde em regime aberto.
A política suscita questionamentos sobre o futuro do tratamento e internação de doentes mentais em conflito com a lei, incluindo autores de crimes violentos. A controvérsia tem um eixo principal. De um lado, o princípio de que eles devem ser tratados na lógica da saúde, observada a dignidade humana, sem as barbáries do passado. De outro, o fato de que, em vez de internados em manicômios judiciários, infratores com transtornos mentais estão, desde meados de 2023, sendo encaminhados para hospitais gerais, onde o cidadão comum busca atendimento.
A normatização do CNJ regulamentou no sistema judiciário a Lei Antimanicomial, de 2001, aprovada como uma resposta aos maus-tratos, violência e abusos que eram cometidos em instituições de internação psiquiátrica no Brasil. O estopim para a virada, que passou a priorizar a lógica da saúde, foi o caso Damião Ximenes Lopes, morto após ser alvo de violência em uma clínica em Sobral (CE), em 1999.
No Rio Grande do Sul, o regramento do CNJ atinge diretamente o IPF, que completa 100 anos em 2025. Historicamente, o instituto, localizado no bairro Partenon, na Capital, foi destino de pessoas que cometeram crimes e tiveram a internação determinada pela Justiça.
Essa solução é aplicada aos réus que praticaram delitos, mas foram diagnosticados por psiquiatras forenses como incapazes de discernir que estavam infringindo a lei à época do fato. São os chamados inimputáveis. Em vez de serem condenados e mandados a presídios comuns, eram encaminhados ao IPF para tratamento, sem prazo para saída, o que dependia das perícias dos psiquiatras forenses.
Publicada em fevereiro de 2023, a resolução do CNJ determinava que, em agosto daquele ano, os hospitais de custódia seriam interditados parcialmente, com proibição de novas internações. No segundo passo, após extensões de prazo, eles seriam fechados de vez em novembro de 2024.
Uma decisão judicial que segue em vigor, emitida em Porto Alegre, antecipou os efeitos da resolução para o IPF, sob alegação de sucateamento, carência de equipe médica e falta de assistência aos internos em higiene, entre outras falhas. Desde junho de 2023, antes do prazo dado pelo CNJ, o IPF está impedido de receber novos internos.
Também ficou proibido de cumprir outra função a partir de setembro de 2023: a de emitir laudos para novos investigados com suspeita de problemas mentais. A decisão judicial determinou que, para cumprir a política antimanicomial, a força de trabalho do IPF se dedicaria a atender a massa que estava lá dentro, com a realização de perícias e planos de desinternação específicos para cada paciente, os Planos Terapêuticos Singulares (TPS).
A nova política na prática
A resolução do CNJ, ao projetar o sepultamento dos hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico (HCTPs), manda que doentes mentais em litígio com a lei sejam encaminhados para um leito de hospital geral. Se tiverem medida de segurança de internação, eles devem ficar em tratamento na rede pública de saúde, observando as normas de cada hospital para alta, visitas e circulação. As internações são para casos excepcionais, desde que recomendadas por equipe de saúde.
Para situações menos graves, a norma diz que os inimputáveis devem cumprir medidas de segurança em liberdade, com a realização de tratamento ambulatorial de saúde na Rede de Atenção Psicossocial e nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPs).
— Uma medida de segurança de internação acontece quando o comprometimento psíquico é muito grande, em fatos graves. Sabemos da dificuldade de conseguir tratamento para o dependente químico que não cometeu crime. Imagina conseguir leito para quem cometeu um crime bárbaro. Precisamos de um equipamento especializado de saúde. Os hospitais gerais não vão dar conta — avalia a promotora de Justiça Alessandra Moura Bastian da Cunha, coordenadora do Centro de Apoio Operacional Criminal do Ministério Público.
A crítica é compartilhada pelo presidente do Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers), Eduardo Neubarth Trindade, que define a resolução como “bomba relógio”. Ele diz que hospitais gerais não dispõem de estrutura para conter os internos.
— Não podemos colocar alguém em surto psiquiátrico, que cometeu algum ilícito, num hospital geral. Os CAPs não dão conta da demanda e complexidade. Eles fazem um atendimento ambulatorial e, depois, a pessoa vai embora. Alguns pacientes precisam de internação. Não podemos demonizar estruturas especializadas — diz Trindade.
Em novembro de 2024, somente em Porto Alegre, a estimativa era de que 5,2 mil pessoas da população em geral estavam na fila para atendimento psicológico, psiquiátrico e encaminhamento para os CAPs.
A debacle dos manicômios judiciários reforçou a preocupação com os recentes episódios de homicídios bárbaros registrados no Rio Grande do Sul. Um deles foi protagonizado por Edson Fernando Crippa, que matou dois policiais militares e dois familiares a tiros em Novo Hamburgo, em outubro de 2024. Ele tinha histórico de esquizofrenia, o que poderia demandar medida de segurança de internação.
— Se ele (Crippa) não tivesse morrido, o colocaríamos no hospital? Seria suficiente para ele o tratamento no hospital? Seria suficiente para a segurança da sociedade? Precisamos fazer os questionamentos. Não podemos viver só de boas intenções. Precisamos de realidade — diz a promotora Alessandra.
Membro do grupo de trabalho de Políticas Penais do Conselho Federal de Psicologia, Maynar Vorga trabalhou no IPF entre 2016 e 2020 e afirma que, nos últimos anos, o perfil de internos sofreu mudanças. Os crimes mais chocantes são os violentos, contra a família, mas ela afirma que há crescente número de custodiados por delitos relacionados ao uso de drogas e dano ao patrimônio. A especialista menciona estudos indicando que, quando o acompanhamento em saúde mental é articulado com políticas públicas e apoio afetivo, o índice de reincidência no crime é baixo, entre 0,5% e 3,5%.
— A pessoa não vai deixar de ser internada quando estiver em crise. O que não vai acontecer mais é a internação de longos anos. Isso não se sustenta cientificamente como benéfico à saúde mental. Funciona mais como forma de segregação — diz Maynar.
Casos de internação são raros, pondera juiz-corregedor
Um grupo de trabalho integrado por técnicos do CNJ, Ministério Público e poderes Executivo e Judiciário está se reunindo semanalmente para discutir o plano de desinternação de custodiados que seguem no IPF. O núcleo também avalia o destino dos novos casos, já sob a luz da proibição de ingressos no instituto.
O TJ-RS informou que, em seis meses de atuação, foram analisados 80 episódios de pessoas em conflito com a lei e possível doença mental. No contingente, havia diferentes estágios processuais: réus, investigados, apenados do sistema prisional comum e outros com medida de segurança. Dos 80, a Justiça informou que “cerca de 15” foram efetivamente internados em hospitais gerais. Para a maioria, a escolha foi pelo plano individual de tratamento de saúde.
É com base nos números diminutos, principalmente se comparados ao volume de delitos cometidos por indivíduos sem doença mental, que o juiz-corregedor Lamare atenta para o caráter raro das internações. Ele realça o fato ao dizer que hoje restam 109 internos no IPF, uma população que se formou ao longo de décadas, já que há casos de internações persistentes há mais de 20 anos.
— Inimputabilidade é excepcional. É um equívoco pensar em milhares de casos. Certamente, não é superior a 20 por ano. É compreensível que a sociedade se preocupe, mas é importante dizer que terão acompanhamento médico constante. Se a junta médica avaliar que é pessoa perigosa para ter liberdade, ela será internada em estabelecimento adequado — afirma Lamare.
Sobre as críticas quanto à suposta insuficiência dos hospitais gerais para suportar a demanda, o juiz-corregedor avaliou que será preciso ter “paciência”. No documento em que pediu ao CNJ o prazo até novembro de 2026 para fechar o IPF, o TJRS apontou que o quantitativo de leitos de saúde mental no Estado é superior ao preconizado pelo Ministério da Saúde. Ao mesmo tempo, eles costumam ser disputados por dependentes químicos.
— Se o Estado não tem hoje estrutura suficiente para os casos graves de internação, é outra conversa. Ele terá de avançar na criação de leitos — diz Lamare.
Para Maynar Vorga, a resolução do CNJ é “uma mudança que dá trabalho”, mas os leitos existentes do SUS darão conta da demanda por se tratar de “um punhado de pessoas”.
Outra solução é pensada para os quadros intermediários — internos com chance de obter liberdade, mas em longas internações no IPF, com possível perda de vínculo familiar. Para eles, uma das alternativas é a construção dos Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs), moradias urbanas equipadas para atender pessoas com transtornos. Atualmente, existem 55 SRTs em 16 municípios gaúchos, o que Lamare considera incipiente. Críticos dizem que ex-internos enviados às casas podem acabar em situação de rua por falta de adaptação.
Perícias pendentes
Antes da resolução do CNJ, o IPF recebia indivíduos com suspeita de doença mental e que haviam cometido crimes. Para não serem misturados preventivamente a presos comuns, o que poderia ampliar o sofrimento do transtorno, eles eram internados no IPF e aguardavam por lá a perícia que diria se eram ou não inimputáveis. O trabalho era feito por psiquiatras forenses. Após os efeitos da resolução, o IPF não está emitindo novos laudos.
Hoje, na prática, ninguém no setor público está atendendo novas demandas. O TJ-RS informou que, em outubro de 2024, havia 1.817 perícias pendentes. Para evitar paralisia, o Judiciário está aplicando recursos próprios para pagar honorários de psiquiatras forenses que fazem as análises.
— Não está acontecendo na quantidade ideal, já que é emergencial, mas está acontecendo — diz o magistrado.
Ele afirmou que o TJ-RS prepara uma força-tarefa, nos moldes da contratação de peritos privados, para enfrentar todas as perícias pendentes. Para o futuro, as autoridades entendem que é adequado criar o quadro de psiquiatras forenses do Instituto-Geral de Perícias (IGP), do governo estadual, para atender a demanda.
Críticos da resolução do CNJ dizem que a fila por perícias atrasa a emissão de laudos de inimputabilidade. Isso levaria presos temporários, com hipótese de doença mental, para a cadeia comum. Lamare diz que, se a situação for de grave suspeita de doença mental e demandar internação, os investigados devem, pela regra atual, ficar em hospital geral enquanto aguardam perícia.
Conclusões divergentes
O juiz-corregedor Lamare afirma que a aplicação da política antimanicomial judiciária transcorre de forma “pensada, cuidadosa e gradual”.
— Há uma ponderação de valor. Compreendemos a necessidade de preservar a dignidade e os direitos humanos, mas, ao mesmo tempo, resguardar a segurança da sociedade. Não estamos fazendo nada precipitado — avalia Lamare.
Para a promotora Alessandra, do MPRS, o IPF deveria voltar a receber novos internos de periculosidade de forma temporária, até que equipamentos de saúde especializados estejam prontos para atender a demanda.
— É um risco precipitar a implementação da política antimanicomial sem estrutura adequada — alerta.
O que diz o CNJ
- Informa que, no primeiro semestre de 2023, havia 2.121 pessoas internadas por medida de segurança em todo o Brasil. No mesmo período de 2024, o contingente caiu para 1.750.
- Os Estados estão aplicando planos próprios, em acordo com o CNJ, para se adaptar à política antimanicomial.
- Quatro Estados já fizeram a interdição total dos manicômios judiciários.
- Quatorze Estados estão com interdição parcial das instituições psiquiátricas de custódia.
- Em São Paulo, por exemplo, o manicômio judiciário ainda recebe novos internos.
O que diz a Secretaria Estadual da Saúde
- Os pacientes são integrados à rede de assistência psicossocial de seus municípios de origem e recebem acompanhamento dos Caps, assegurando cuidados médicos e terapêuticos.
- Quando há necessidade de internação, ela ocorre em leitos de saúde mental de hospitais gerais. Esses leitos destinam-se a situações de crise em saúde mental ou desintoxicação. As internações são de curta duração. É priorizada a reabilitação psicossocial em liberdade e vinculada a serviços de base comunitária.
- Na atenção especializada, são 217 Caps em 112 municípios, 14 Unidades de Acolhimento (UA) em sete municípios e 39 Equipes Multiprofissionais Especializadas em Saúde Mental (EMAESM).
- Na atenção hospitalar, são 1.341 leitos de saúde mental integral em hospitais gerais e 671 leitos em hospitais psiquiátricos, com acesso regulado pela SES.
- Considerando que a população do RS é de 10,8 milhões de habitantes, a relação atual é de cerca de um leito para cada 5 mil habitantes. A proporção de vagas é significativamente superior ao parâmetro estabelecido pelo Ministério da Saúde, de um leito de saúde mental para cada 23 mil habitantes.
O que diz a Secretaria de Sistemas Penal e Socioeducativo
- Quando identificados indícios de transtorno mental em pessoas privadas de liberdade, o estabelecimento penal deve elaborar relatório psicossocial com objetivo de informar ao juízo o histórico e a atual situação do custodiado para que sejam tomadas as medidas pertinentes, em acordo com a resolução CNJ nº 487/2023, como instauração de incidente de insanidade mental ou aplicação de medida cautelar diversa à prisão.
- A Polícia Penal vem trabalhando intensamente para o cumprimento da política antimanicomial do Poder Judiciário e para a qualificação da oferta de cuidado em saúde mental. Contudo, considerando que o efetivo cumprimento da resolução envolve outros órgãos do Poder Executivo e do Poder Judiciário, permanece sendo necessária a criação de todos os dispositivos previstos, bem como o fortalecimento dos dispositivos extramuros responsáveis por acolherem as pessoas com transtornos mentais em conflito com a lei em seus territórios, o que não está a cargo da Polícia Penal.