
Quatro dias após deixar o hospital, uma motorista de 44 anos conseguiu sair de casa pela primeira vez. O destino era a igreja evangélica que frequenta há 14 anos, onde seria realizado um culto de celebração. A comemoração na noite da última quarta-feira (22), que levou fiéis, amigos e familiares ao local, era por Marta (nome fictício) estar viva. Na tarde do último dia 8 de dezembro, a motorista foi abordada a tiros por criminosos em fuga no bairro Sarandi, baleada, e, ainda assim, dirigiu cerca de quatro quilômetros até o Hospital Cristo Redentor.
Durante o encontro na noite da última quarta-feira (22), Marta apresentava as cicatrizes deixadas pelos dois tiros que transfixaram seu corpo. Um deles atingiu a boca, atravessou a língua e saiu pelo pescoço. Outro acertou o ombro esquerdo, pelas costas. Em razão da fratura causada pelo impacto do tiro, o braço está imobilizado. Dos 10 dias nos quais esteve hospitalizada, precisou ser sedada e permaneceu uma semana em tratamento intensivo.
Mesmo abalada fisicamente, conseguiu descrever durante o culto como se deu o ataque dos criminosos. Até ser abordada, tudo corria como um dia qualquer. Havia saído de casa de carro com o filho adolescente para buscar um amigo dele na Avenida Engenheiro Francisco Rodolfo Simch. Dali, os garotos seguiriam juntos para um treino. Segundos antes de Marta chegar na casa do adolescente, o amigo da família presenciou uma execução.
Em frente ao prédio onde residia, Claudemir da Silveira, 32 anos, foi assassinado por três criminosos com cerca de 80 disparos. Os bandidos atacaram Zeca, como era conhecido, no momento em que ele saía de casa com a mulher e a filha. Apontado como um dos gerentes do tráfico de drogas da antiga Vila Nazaré, já havia sofrido ao menos outros três atentados antes de ser morto.
Apavorado, o adolescente que aguardava a carona de Marta se escondeu atrás dos carros estacionados, até os tiros cessarem. Quando a motorista chegou, o garoto embarcou apressado. Dentro do veículo, passou a relatar o que havia acontecido.
— Está bem? Nada aconteceu contigo? — indagou Marta.
Evangélicos, os três passaram a orar dentro do carro em agradecimento pelo fato de o adolescente não ter se ferido. Era assim que estavam no momento em que ingressaram com o veículo em outra rua próxima. Pouco antes, os criminosos que executaram Zeca, durante a fuga, tinham batido o carro contra uma árvore. Quando tentavam escapar, depararam com o veículo de Marta.
— Quando entrei nessa rua, já fui abordada com tiros. Não era uma tentativa de assalto. A minha reação como mãe, de proteger os meus filhos, foi acelerar. Então, não reagi a um assalto. Protegi os meus filhos — relatou.
Marta gritou para que os adolescentes se abaixassem e eles obedeceram. Neste momento, sentiu o primeiro tiro atingir seu rosto, e continuou acelerando o carro para cima dos criminosos. O filho, ao lado dela, levantou novamente ao perceber que ela tinha sido ferida. Marta ordenou uma segunda vez: “Abaixa”. Os tiros não paravam.
— Não foi uma tentativa de assalto. Acho que eles queriam me parar, mas me matando. Não teve uma abordagem: “Queremos o teu carro”. Sabia que se parasse iríamos morrer. Não tive dúvidas e não tenho arrependimento de ter acelerado — afirmou.
Pelo menos oito disparos alvejaram o carro: quatro deles no vidro ao lado da motorista, dois no vidro dianteiro e dois na lataria. Em meio aos disparos, Marta não tinha certeza se o filho e o outro adolescente, a quem também chama de filho, não tinham sido feridos. Assim que conseguiu se afastar dos bandidos, seguiu acelerando. No caminho, o garoto olhou para a mãe e disse que não queria que ela morresse. Ela pediu que ele rezasse.
— Ele começou a orar, com passagens bíblicas. Eles (adolescentes) não sabiam para onde eu ia. Mas eu sabia — recordou.
O objetivo de Marta era chegar ao Hospital Cristo Redentor. No trajeto, ao depararem com uma sinaleira fechada, os garotos saltaram do carro e ergueram as mãos pedindo que os motoristas parassem. Com a passagem livre, seguiram no mesmo caminho. Na Avenida Assis Brasil, na tentativa de chegar mais rápido, já que perdia muito sangue, Marta decidiu entrar no corredor de ônibus. Seguiu ziguezagueando entre os coletivos, até sentir que o corpo estava desfalecendo.
Não foi uma tentativa de assalto. Acho que eles queriam me parar, mas me matando. Não teve uma abordagem: “Queremos o teu carro”.
VÍTIMA
44 anos
— Ali vi que poderia colocar a vida deles em risco e aí eu parei. Parei e disse: “A mãe não vai conseguir chegar”. Ele disse: “Vai sim, vai conseguir, a gente não chegou ainda no hospital”. Eu disse: “Filho, a mãe não vai conseguir chegar”. Aí eu parei o carro. Estava desmaiando — contou.
Quando desligou o veículo, Marta estava a poucos metros de um dos acessos ao Cristo Redentor. Os adolescentes desembarcaram e começaram a gritar por ajuda. Segundo a motorista, os primeiros policiais a chegarem ao local acreditaram que estivesse morta. O socorro chegou por meio de um técnico em enfermagem e um médico.
— Deus enviou uma ambulância da SOS Unimed. Eles tinham acabado de sair do hospital, onde deixaram um paciente, e viram a situação. Quando ele (técnico de enfermagem) chegou perto de mim, gritou: “Moça!” E eu abri os olhos. Ele gritou: “Ela está viva!” A fisionomia desse moço nunca vou esquecer — descreveu.
Do médico, a motorista ouviu a frase que esperava até aquele momento: “Teus filhos estão bem, não foram baleados”. Hospitalizada, Marta inicialmente precisou ser sedada, e a recuperação se deu de forma gradativa. Ao longo dos dias, abriu os olhos e começou a rabiscar em um papel o que queria falar. No sétimo dia, deixou o tratamento intensivo e recebeu alta no último sábado (18).
Duas semanas depois, enfrenta sequelas físicas, mas diz que não teme sair de casa novamente. Tem convicção de que a fé foi determinante para que se salvasse e recuperasse de forma ágil.
— Eu canso muito fácil, sinto vontade de deitar. Estou com minha língua e boca toda ferida. Medo de sair não tenho. Estou viva porque Deus me deu discernimento de fazer o que deveria ser feito. Doeu, doeu, mas eu não temi. Deus me deu nova vida e sou grata por isso — disse.
Investigação
Nesta quinta-feira (23), a motorista foi ouvida pela Polícia Civil, onde relatou como aconteceu a abordagem dos criminosos. Relatou novamente que os bandidos não chegaram a anunciar o assalto e passaram a disparar assim que avistaram o carro e que, por isso, ela precisou escapar. A polícia acredita que os bandidos pretendiam usar o carro dela para seguir em fuga.
Segundo o delegado Luis Firmino, da 3ª Delegacia de Homicídios da Capital, a investigação segue tentando localizar um foragido, que teria sido um dos executores. A companheira dele foi presa em 15 de dezembro, em Mariana Pimentel, por suspeita de envolvimento no caso. O veículo do casal, segundo a polícia, foi usado pelos bandidos no crime.
— Ela foi ouvida uma vez, mas não trouxe nenhuma informação relevante. Devo ouvi-la novamente no fim da semana que vem — disse o delegado.