Com uma poesia emoldurando o relatório de uma sentença, a juíza Karla Aveline, titular do 3º Juizado da Infância e Juventude de Porto Alegre, traduziu por meio da literatura seu entendimento sobre trabalho infantil no narcotráfico. A decisão viralizou — até mesmo o autor dos versos, Sergio Vaz, se manifestou sobre o fato nas redes sociais.
Intitulado A vida é loka, o poema (veja a íntegra abaixo) foi usado para provocar reflexão sobre a ausência de políticas públicas nas comunidades brasileiras. Em um dos trechos, o poeta compara um livro a "uma arma de quase 400 páginas na mão". Em outros, menciona "pílulas de sabedoria", "tráfico de informação" e "umas mina cheirando prosa".
A sentença foi proferida na última sexta-feira (20), após representação do Ministério Público em desfavor de um adolescente. O órgão imputava a ele a prática de ato infracional análogo ao crime de tráfico de drogas, pedindo a aplicação da medida socioeducativa de internação sem possibilidade de atividades externas. Em audiência, o jovem negou a autoria.
A juíza — que figurava como substituta na 4ª Vara do Juizado — entendeu que se tratava de um caso de trabalho infantil e julgou improcedente a representação, afastando a aplicação das medidas socioeducativas "a fim de que o adolescente que tem sua força de trabalho explorada pelas organizações criminosas receba a proteção adequada".
Karla sustenta sua posição com base na convenção n° 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Segundo essa legislação, vigente no Brasil, "a expressão das piores formas de trabalho infantil" compreende "utilização, recrutamento e oferta de criança para atividades ilícitas, particularmente para a produção e tráfico de entorpecentes conforme definidos nos tratados internacionais pertinentes".
— A questão é que esse tema não é debatido, seja no meio jurídico, seja na sociedade. Esbarramos no senso comum de que um adolescente é um traficante, sem olhar o contexto e a ausência de políticas públicas. Esse adolescente não deve ser criminalizado, mas protegido — afirma.
Ela conta que estava no último dia do prazo para fazer a sentença quando teve um "insight", ou seja, um lampejo, uma revelação.
— Naquele dia eu recebi uma música de um amigo. A letra falava sobre contradições, dificuldades de pessoas empobrecidas e o sofrimento dessa juventude. O "insight" se deu nesse momento, quando lembrei da poesia. Eu já havia, inclusive, dito para a minha assessora que iria fazer um banner com essa obra do Sergio Vaz para pendurar atrás da minha cadeira na sala de audiências — diz Karla.
Amante da literatura, ela conta que conheceu o trabalho do poeta há alguns anos, após ter lido uma entrevista dele. Chamou atenção da magistrada não só a produção literária do autor, mas a atuação dele em bairros periféricos de São Paulo (Vaz é criador de uma cooperativa cultural na capital paulista).
— Percebi o impacto da literatura naquele contexto e isso me marcou muito. Sem falar que gosto da forma como ele usa a escrita para dialogar com a comunidade e proporcionar reflexão, e, mais do que isso, transformação — afirma.
À sentença, a juíza acrescentou trechos de sua dissertação de mestrado, apresentada em 2020 na Universidad Pablo de Olavide, em Sevilha, na Espanha. O trabalho — no qual a magistrada tirou nota máxima — fala justamente sobre o que Karla considera um "silenciamento" da magistratura brasileira sobre o trabalho infantil no narcotráfico, o que estaria, segundo ela, ligado ao perfil dos juízes e juízas do Brasil.
— Nossa magistratura é 80% branca, 60% masculina. Estamos em posições privilegiadas, enquanto esses adolescentes, em sua maioria, são pretos ou pardos. Então, há a continuidade de um projeto colonial, onde nós, brancos, hierarquizamos, inferiorizamos, encarceramos corpos negros. É o que sempre fizemos. Essa escravização sempre contou com a chancela dos poderes ocupados por pessoas brancas — argumenta.
Segundo ela, a decisão que reconhece o ato infracional análogo ao tráfico de drogas como trabalho infantil não tem precedentes em primeiro grau. Em segundo grau, a magistrada lembra que um desembargador do Rio de Janeiro costumava sustentar suas decisões desta forma, mas "era sempre voto vencido".
— O direito é uma ciência jurídica e social, mas estamos nos apegando muito ao jurídico e faltando no social. É preciso enxergar um contexto precarizado. A mãe desses adolescentes trabalha para nós e não tem escola integral para colocar os filhos. Enquanto isso, a droga segue sendo consumida pela alta sociedade, mas tem um custo, que é a vida desses adolescentes. Eles ficam ali, gerenciando os pontos, mas a investigação não chega no patrão, no dono da droga — afirma.
Questionada por que acredita que o uso de uma poesia na sentença gerou tanta repercussão, a magistrada acredita que "não é isso o que esperam do Judiciário":
— A nossa língua não é a mesma da maior parte da população. Quando vê um juiz expressando a voz do outro, a comunidade se surpreende. A literatura proporcionou que eu pudesse dialogar com outros mundos, como esse que a gente encarcera.
Leia a poesia de Sergio Vaz:
A VIDA É LOKA
Esses dias tinha um moleque na quebrada
com uma arma de quase 400 páginas na mão.
Uma minas cheirando prosa, uns acendendo poesia.
Um cara sem nike no pé indo para o trampo com o zóio vermelho de tanto ler no ônibus.
Uns tiozinho e umas tiazinha no sarau enchendo a cara de poemas. Depois saíram vomitando versos na calçada.
O tráfico de informação não para,
uns estão saindo algemado aos diplomas depois de experimentarem umas pílulas de sabedoria.
As famílias, coniventes, estão em êxtase.
Esses vidas mansas estão esvaziando as cadeias e desempregando os Datenas.
A Vida não é mesmo loka?
Sergio Vaz, o Poeta da Periferia, do livro "Flores de Alvenaria"