Lançado no começo do mês pelo Piratini, um programa destinado a estabelecer regras mais objetivas de distribuição de incentivos financeiros aos hospitais gaúchos ligados ao SUS desperta controvérsia entre prefeitos e gestores de estabelecimentos de saúde.
O governo estadual considera a mudança fundamental para tornar mais “transparente e justo” o repasse de verbas aos estabelecimentos, mas a Associação dos Municípios da Região Metropolitana de Porto Alegre (Granpal) estima a perda de cerca de R$ 200 milhões ao ano em transferências a instituições de sua área de abrangência.
Ao apresentar o programa Assistir, em 3 de agosto, o governador Eduardo Leite afirmou que a iniciativa tem como objetivo implantar critérios técnicos e transparentes para definir quanto dinheiro será entregue a cada hospital:
— Transparência faz bem para a saúde. Deixar tudo às claras como funciona, quais são os critérios, por que alguém está recebendo ou não está recebendo. Justiça também faz bem à saúde, remunerar de forma justa e não porque é amigo do rei — argumentou Leite.
A diretora do Departamento de Gestão da Atenção Especializada da Secretaria Estadual da Saúde (SES), Lisiane Fagundes, explica que, até agora, o Rio Grande do Sul contava com 17 diferentes incentivos à rede de atendimento, mas metade dos cerca de R$ 800 milhões anuais disponíveis para auxiliar os hospitais era distribuída por uma rubrica chamada “orçamentação”, que não tinha regras ou contrapartidas específicas. Ou seja, não era necessário comprovar a aplicação da verba em um determinado volume de atendimentos ou procedimentos.
— Tínhamos hospitais de portes semelhantes, por exemplo, em que um recebia R$ 9 milhões, e o outro, R$ 57 milhões anuais sem justificativa para um recurso dessa monta não estar vinculado à prestação de serviço — exemplifica Lisiane.
O novo programa unifica todas as formas de repasse em uma fórmula única de cálculo, sustentada por quatro pilares básicos, que determina quanto dinheiro uma instituição pode receber com base no tipo e no volume de serviços oferecidos. Em linhas gerais, são considerados a importância e a complexidade da assistência prestada (as mais complexas e essenciais têm peso maior), e indicadores como capacidade de atendimento e número de leitos (veja detalhes no quadro explicativo mais abaixo).
A proposta afeta a saúde de Canoas e de outras 156 cidades
JAIRO JORGE
Prefeito de Canoas
Mas essa alteração vem provocando reações de prefeitos que apontam quedas de receita com base na aplicação prática das novas regras. Prefeito de Porto Alegre e presidente da Granpal, Sebastião Melo (MDB) postou em uma rede social que “tem mérito a iniciativa”, mas “também representa perdas significativas”. Melo acrescenta que “somente em três hospitais municipais (HPS, Restinga e Presidente Vargas), a prefeitura de Porto Alegre perderia quase R$ 40 milhões. A rede de urgência fica altamente prejudicada”. Ele diz que vai buscar um diálogo com o Piratini.
O prefeito de Canoas, Jairo Jorge (PSD), também estima que haverá corte de repasses para o município.
— Essa proposta afeta profundamente a saúde de Canoas e de outras 156 cidades do Rio Grande do Sul que dependem do HPS (canoense) e do Hospital Universitário. De setembro de 2021 a setembro de 2024, se essa proposta for implementada, Canoas perderá R$ 256 milhões. São R$ 72 milhões ao ano — declarou Jairo Jorge em depoimento à Rádio Gaúcha.
Produziu, tem de receber. Acredito que seja um ótimo programa
LUCIANO ORSI
Prefeito de Campo Bom
Já o prefeito de Campo Bom, Luciano Orsi (PDT), avalia a mudança como benéfica:
— Temos mais de 70% de todo o custo do nosso hospital arcado pelo município. O saldo é, em boa parte, (pago) pela União, e pequeníssima parte o Estado nos repassava. Sempre trabalho na ótica da meritocracia: produziu, tem de ter direito a recebimento, e nós produzíamos e não tínhamos direito a recebimento quase nenhum. Acredito que seja um ótimo programa — analisa Orsi.
Lisiane Fagundes sustenta que, dos 218 hospitais vinculados aos incentivos estaduais, 162 teriam aumento nos repasses e 56, alguma queda. Porém, o montante global de cerca de R$ 800 milhões anuais destinado a esse tipo de auxílio não muda.
— Para o caso dos hospitais que venham a ter diminuição, é possível recompor os valores se adequando à oferta de atendimento, aumentando a prestação dos serviços. Mas também é importante registrar que o incentivo estadual é um aporte voluntário por parte do governo. O que gera a obrigação de atendimento é a transferência federal vinculada para alta e média complexidade, que os hospitais seguem recebendo — afirma a diretora da Atenção Especializada da SES.
Os hospitais têm até 23 de agosto para aderir ao programa – prazo que foi prorrogado por solicitação de parte dos prefeitos. Uma fração dos gestores municipais tenta ganhar mais tempo para seguir dialogando com o Piratini. Pela previsão, a conversão do modelo atual para o programa Assistir será feita ao longo de um período de transição de 10 meses.
Nesse intervalo, a diferença entre o que o hospital recebia e o que passará a receber será de um décimo a cada mês, tanto para os hospitais que terão aumento quanto para os que sofrerão redução na transferência do recurso.
Como funciona o programa
Os pilares
O Assistir estabelece uma fórmula de cálculo, com base em indicadores predeterminados, para definir quanto dinheiro será repassado a um hospital pelo Piratini. A conta inclui quatro itens básicos:
1) Tipos de serviços
O programa contempla 13 tipos diferentes de atendimento, selecionados com base em indicadores epidemiológicos. O tipo e a quantidade de serviços oferecidos podem resultar em repasses maiores ou menores.
- Porta de entrada (acesso inicial em situação de urgência ou emergência)
- Maternidade
- Ambulatório de gestação de alto risco (acompanha o pré-natal)
- Maternidade de alto risco (realiza o parto)
- Egresso de UTI neonatal (ambulatório que acompanha os bebês que precisaram de UTI)
- Ambulatório de especialidades
- Ambulatório de especialidades prioritárias (com maior demanda)
- Ambulatório de crônicos, idosos e lesões na pele
- Leitos de saúde mental
- Leitos de UTI e UCI (terapia ou cuidados intensivos)
- Procedimentos e exames em oncologia
- Hospitais de pequeno porte e leitos de saúde prisional
Na fórmula de cálculo, cada tipo de serviço receberá um peso conforme a importância e a qualificação de cada um, o que terá impacto no valor final (mais detalhes no item “peso”).
2) Unidade de Incentivo Hospitalar (UIH)
É o valor monetário, fixado em decreto do governo estadual, utilizado como referência na fórmula de cálculo para se chegar a um valor final expresso em reais. É o componente financeiro da fórmula matemática utilizada, e não representa fator de diferença entre os estabelecimentos.
3) Peso
É um número atribuído, com base em estudo da área técnica da SES, para ponderar o valor a ser recebido pela instituição considerando a importância, a essencialidade e a qualificação de cada tipo de serviço prestado. Isto é, um determinado tipo de serviço pode receber um peso maior, e, por consequência, um incentivo mais elevado, por ser considerado mais essencial.
4) Unidade de referência
É outro fator de ponderação dentro da fórmula, que busca evitar possíveis distorções de repasses provocadas, por exemplo, por diferenças no tamanho e na capacidade de atendimento dos hospitais. Assim, se evita que instituições de dimensões muito diferentes recebam incentivos semelhantes. Três critérios são levados em consideração:
- Produção de serviços de internação e ambulatoriais, medida com base nos dados oficiais do SUS
- Número de leitos SUS
- Tipo e complexidade do serviço prestado
Hospitais com maior produção, capacidade e complexidade no atendimento tendem a receber incentivos mais elevados do que estabelecimentos menores e de menor complexidade, por exemplo.
Modelo de cálculo
A conta multiplica os índices atribuídos ao tipo de serviço prestado (com o peso definido para cada um conforme a importância e a qualificação) e à unidade de referência (que mede a estrutura, a produção e a complexidade do serviço) ao valor financeiro de referência (a Unidade de Incentivo Hospitalar, que é a mesma para todos e serve apenas para o cálculo do recurso a ser repassado em reais).
O resultado dessa fórmula é chamado de Valor do Incentivo para o Tipo de Serviço (VITS): é quanto dinheiro o hospital vai receber para cada tipo de atendimento prestado.
Definição do valor final
Os valores de incentivo calculados para cada tipo de serviço entregue pela instituição (por exemplo: urgência e emergência, UTI e oncologia) são somados para determinar o total que será repassado ao estabelecimento de saúde.
Por esse exemplo, o hospital poderia receber R$ 1 milhão pelo serviço de emergência, R$ 1,5 milhão pelo atendimento em oncologia e R$ 2 milhões pelos leitos de UTI (valores hipotéticos). O repasse total seria de R$ 4,5 milhões.
Um último valor, chamado Suplementar Diferencial, ainda pode ser acrescentado ao cálculo. É um incentivo extra oferecido a estabelecimentos que oferecem algum tipo de serviço listado como estratégico, como, por exemplo, transplantes de órgãos.