A Festa de Nossa Senhora dos Navegantes exige não apenas fé, mas também trabalho incondicional. Para fazer o mais tradicional evento religioso de Porto Alegre, que espera mais de 100 mil pessoas apenas neste domingo (2), cerca de 200 voluntários doam seu tempo, paciência e talento. Eles não descansam até que a última bênção seja dada no santuário que homenageia a Santa, na zona norte da Capital.
No dia da procissão (confira abaixo o serviço), GaúchaZH conta a história de quatro pessoas com trajetória de devoção e de serviço à mãe de Jesus:
Terceira geração de uma homenagem
![Omar Freitas / Agencia RBS Omar Freitas / Agencia RBS](http://www.rbsdirect.com.br/imagesrc/25494133.jpg?w=700)
Um tapete de hortênsias aguardava Nossa Senhora dos Navegantes na saída do santuário. Sobre ele, os remadores ergueram a imagem nos ombros e começaram a procissão da Avenida Sertório até a Igreja do Rosário, no Centro Histórico, no dia 19. É nessa hora que o analista de laboratórios Gerson Vargas Galdino, 49 anos, lembra da avó, da mãe, da madrinha — já falecidas — e de todos que, ao lado dele, curvaram-se alguma vez sobre o asfalto para espalhar flores no chão.
O tapete é uma tradição da família Galdino. Começou há mais de 70 anos com dona Carlota, que passou a responsabilidade ao neto. À época, ela colhia aguapés no Guaíba. A cidade cresceu, a freeway e os trilhos do trem empurraram o Guaíba para longe, e Carlota mudou a matéria-prima para a flor da estação, usada até hoje.
— Batíamos de porta em porta, pedindo hortênsias dos jardins dos vizinhos — recorda Gerson.
Há dez anos, a família busca as flores em um sítio em Santa Maria do Herval. No domingo em que a ocorre a primeira procissão, que dá início à programação da festa, saem às 7h de Porto Alegre para colorir a caçamba de um caminhão de azul e branco. Começam a trançar as flores sobre pavimento com o sol alto: vão acomodando os ramos no chão até finalizar o tapete de dez metros de comprimento e cinco de largura. Quando velhinha — faleceu com 94 anos —, Carlota acompanhava a confecção do tapete sentada em uma cadeira de praia, ao lado deles.
Gerson não se contenta apenas com essa missão: ajuda como pode na festa. Enquanto distribuía fitas azuis com o nome da Santa, no centro de Porto Alegre, tentou explicar à reportagem o tamanho da devoção.
— Devo minha vida a ela. Meus amigos, que sabem que eu tenho essa fé, pedem: "Gersão, reza para mim". Eu digo: "pode deixar, confia nessa mãe". As coisas são difíceis, mas se tu pedir, pedir com fé, consegue alcançar.
Bênção maior vai ser se os filhos Felipe, 6 anos, e Daniel, 2 anos, quiserem seguir seus passos no futuro.
— Isso veio da minha avó, passou para o meu pai e tios, para mim, e eu gostaria que continuasse. Para que quando eu estiver do lado dela — diz Gerson, apontando para a imagem de Nossa Senhora — a tradição continue aqui.
O comandante da procissão
![Omar Freitas / Agencia RBS Omar Freitas / Agencia RBS](http://www.rbsdirect.com.br/imagesrc/25494136.jpg?w=700)
Com uma mão na proa do barco de Nossa Senhora, João Seberino, 59 anos, aponta com a outra a direção pela qual os remadores devem carregá-la. Durante as duas semanas do evento, é do padeiro a responsabilidade de coordenar o deslocamento da Santa — seja na procissão à Igreja do Rosário, no caminho inverso até a Zona Norte, ou, como naquela quarta-feira, na visita que a imagem fez ao Largo Glênio Peres para se aproximar dos fiéis.
Com regata azul, calça branca e, nas procissões oficiais, quepe de marinheiro na cabeça, ele é o comandante do andor há quatro anos. Mas já carrega a Santa há 40, por água ou, nos últimos anos, por terra.
— Eu vou dirigindo os remadores, revezando eles, e, quando precisa, carrego também. Não cansa não: a adrenalina fica alta, tu supera o peso. Não sente dor.
O semblante permanece sério, mas ele admite que, por dentro, é virado em emoção. É devoto dela ao longo dessas quatro décadas que participa da procissão.
— Só peço saúde e paz.
Na procissão de domingo, devem ser 120 pessoas carregando a Santa entra a Rua Vigário José Inácio e a Avenida Sertório. Cerca de 30 mulheres e 90 homens vão se revezando para levar o barco de madeira com a imagem vinda de Portugal. Como muitas pessoas deixam medalhas, orações, objetos pessoais, flores, velas, a estrutura pode pesar até 700 quilos.
No trajeto de cerca de cinco quilômetros, revezam-se pessoas de 20 e poucos anos e gente de 87 — hoje, a maioria já não é mais composta por praticantes do esporte, mas todos seguem sendo chamados de remadores.
Aos 30 anos, o sobrinho de João fez a estréia este ano. Já era uma reivindicação antiga do familiar, mas João queria que estivesse pronto. Acredita que se juntar a esse grupo deve representar um compromisso. É preciso carregá-la sob sol forte, chuva ou temporal, como ele já fez muitas vezes.
— Se a pessoa não tem fé, ela não fica. E isso, eu tenho demais.
A guardiã de Nossa Senhora
![Isadora Neumann / Agencia RBS Isadora Neumann / Agencia RBS](http://www.rbsdirect.com.br/imagesrc/25494137.jpg?w=700)
Para os organizadores da Festa de Nossa Senhora dos Navegantes, a função da servidora pública Carmen Vera Lopes da Silva, 63 anos, é denominada "coordenadora do andor". Mas, na prática, ela é uma espécie de guardiã da imagem de Nossa Senhora. Está sempre ao lado da escultura de madeira de 1m50cm, zelando para que nada lhe aconteça e servindo também de ponte com os fiéis.
Junto a outras coordenadoras, é a ela que os fiéis entregam objetos para a Santa abençoar — em um evento que reúne dezenas de milhares, não é permitido chegar muito perto ou encostar na imagem. Carmen segura desde chaves, capacetes, crucifixos, fotos de pessoas doentes até artefatos mais curiosos, como mechas de cabelo. Leva o objeto até Nossa Senhora, segura-o perto do manto azul por alguns instantes e faz a oração em nome do dono. Também recebe no colo bebês com apenas semanas de vida. Coloca eles sobre o barco da Santa.
— Eu faço uma oração muito forte, pedindo a Nossa Senhora que transmita àquela pessoa amor, serenidade, paz, humildade, o trabalho que está pedindo, a bênção de saúde que está pedindo. Com certeza, Nossa Senhora escuta, e milagres são feitos.
Desde o dia 10, era também dela a responsabilidade de fazer plantões de oração no Santuário de Nossa Senhora dos Navegantes. Tanto de manhã, quanto à tarde, tinha grupos rezando o terço junto à imagem.
Carmen interrompe a conversa com a repórter para mostrar, na tela do celular Motorola, uma foto que tirou em um dos raros momentos em que ficou longe de Nossa Senhora. Fez o registrou na saída da imagem do santuário da Sertório para a procissão até a Igreja do Rosário. Mostra que, ao redor da Santa, o céu parece mais claro, o que acredita ser a delimitação da aura da mãe de Jesus. Chama atenção também para o fato de as árvores parecerem continuação do barco.
— Mostrei para o padre. Ele disse que fui abençoada — conta, animada.
Uma vida de devoção
![Marco Favero / Agencia RBS Marco Favero / Agencia RBS](http://www.rbsdirect.com.br/imagesrc/25494139.jpg?w=700)
Há três meses na cama, com dores horríveis na coluna, Elsa Anna Paz da Silva, 91 anos, teve uma conversa franca com Nossa Senhora dos Navegantes no ano passado:
— Pedi para ela que me desse saúde ou que me levasse.
Dona Elsa tem certeza de que foi ouvida. Fez uma cirurgia, tratamento de fisioterapia e entrou caminhando na missa que deu início à festa da mãe do céu no dia 19, na Avenida Sertório.
A costureira aposentada trabalha há décadas em prol do Santuário de Nossa Senhora dos Navegantes. Nos galetos da igreja, era dela o molho servido sobre o macarrão — receita ensinada por uma italiana. Também já foi responsável pela venda de pastéis.
Em razão da idade, já não participa mais da organização da festa, nem acompanha a procissão. Mas não quer dizer que ficou de braços cruzados: bordou e fez crochês em panos de prato que serão vendidos em prol da igreja junto à banca de artesanatos no domingo.
— Tudo o que eu fiz foi com alegria, com amor — relata a senhora de voz calma e cabelos brancos.
![Marco Favero / Agencia RBS Marco Favero / Agencia RBS](http://www.rbsdirect.com.br/imagesrc/25494140.jpg?w=300)
Natural do interior de Taquara, no Vale do Paranhana, morando desde os 14 anos na Capital, Elsa passou a ser devota no seu casamento, realizado no santuário em um sábado de sol de 1948 — conheceu o marido, já falecido, em uma quermesse, quando tinha 18 anos. Fez bodas de prata e de ouro nessa mesma igreja. Foi convidada pelo padre a trabalhar pela paróquia quando a filha, que hoje tem 67 anos, nasceu.
Dona Elsa vai à missa toda semana e reza o terço todo dia — ela o leva na bolsa. É um objeto azul que, calcula, tem mais de 50 anos.
— Ela tem uma fé... que a tirou da cama. Tá aí, firme e forte — diz a filha Sonia Eliane Paz da Silva, 67 anos, ressaltando a lucidez da mãe na casa dos 90 anos.
O segredo de Elsa bem parece inspirado na santinha.
— Tem que querer bem as pessoas e rezar.
Serviço
A 145ª procissão de Nossa Senhora dos Navegantes ocorre neste domingo (2). Reconhecida como o mais tradicional evento religioso da Capital, é também uma das maiores procissões da América Latina. Milhares de pessoas são esperadas para acompanhar o traslado da imagem após a Missa de Despedida na Igreja Nossa Senhora do Rosário, na Rua Vigário José Inácio, Centro Histórico, onde a Santa está desde o 19 de janeiro.
A celebração tem início às 7h e é presidida pelo pároco do Santuário do Rosário, padre Gelson Luiz Fraga Ferreira. Como em outras edições, a procissão deve partir às 8h em direção ao Santuário de Nossa Senhora dos Navegantes, na Avenida Sertório, bairro Navegantes.
Dez bancas de alimentação estarão à disposição, assim como uma loja de artigos religiosos voltados à fé e oração, como terços, santinhos, imagens, escapulários, medalhas, velas, entre outros.
Às 20h, ocorre a entronização da Imagem para o Altar da Igreja de Nossa Senhora dos Navegantes, onde ficará por mais um ano abençoando a comunidade da Capital.
Ajuda financeira
Sem recursos públicos ou patrocínio para a festa, a Irmandade de Navegantes criou um crowdfunding. Esse recurso também será reservado para o restauro do Santuário de Nossa Senhora dos Navegantes, que precisa de reformas na estrutura de telhado, paredes e pisos. A obra orçada e licitada soma R$ 500 mil. As contribuições são feitas pelo site www.doa.la/navegantes2020.