Em uma fábrica oculta para o público em geral, um excêntrico chocolateiro comanda a produção do doce a partir de grãos de cacau trazidos de terras distantes. O que poderia ser a introdução de um sucesso cinematográfico (lembra A Fantástica Fábrica de Chocolates, de 1971) é parte da rotina nos fundos de um imóvel à beira do Guaíba, na zona sul de Porto Alegre. No local, funciona a Magian Cacao, marca que fabrica chocolates artesanais finos vendidos para chefs de cozinha, empórios e cafés da Capital.
O Willy Wonka da Vila Assunção é André Passow, 37 anos. Nascido e criado na Zona Sul, em meio à produção de chocolates (seus pais faziam ovos no porão da casa em que cresceu, no bairro Ipanema, e o avô trabalhou para a Garoto), ele começou a produção própria há cerca de quatro anos. Diferentemente do que ocorre nas fábricas onde cresceu, em que o trabalho consiste apenas em misturar o cacau em pasta a outros ingredientes, sua atividade começa muito antes da produção em si, a milhares de quilômetros de casa.
Ele acompanha a matéria-prima desde a colheita, em uma fazenda no Vale do Jequitinhonha, na Bahia. Ruma para lá pelo menos duas vezes por ano para visitar o cacaueiro Eduardo Melo e verificar o processo de fermentação e secagem dos grãos que irá utilizar nos chocolates. O que se desenrola depois que chegam à Capital é um processo 100% artesanal: torra os grãos em um forno, descasca-os e coloca para moer. A preparação dos chocolates gourmet, que também é feita por ele, dispensa aditivos químicos, levando apenas cacau e açúcar (em alguns tipos, adiciona leite ou manteiga de cacau).
— Normalmente o cacau que vai para a indústria é colhido de qualquer jeito. Eu estava interessado no Bean to Bar (em tradução literal, "do grão à barra", conceito de produção artesanal que implica o acompanhamento de todo o processo) e fui atrás de um produtor. Mas nenhum de nós dois tinha feito isso antes. A gente foi aprendendo junto — conta.
Autodidata, André conciliou parte dos conhecimentos adquiridos no negócio da família (o pai ainda mantém uma fábrica em Gramado) com o que aprendeu assistindo a vídeos na internet, em feiras de cacau e viagens. O início foi marcado pelo improviso. A torra era feita no forno da própria cozinha, e a descascamento era finalizada com o secador de cabelo da esposa, Giovana.
— De primeira, já saiu melhor que os industriais. Mas era tudo meio no instinto. Passei um ano e meio dando chocolate para os amigos — recorda.
Aos poucos, foi aprimorando as receitas e melhorando a estrutura da fábrica caseira (utilizou dois quartos nos fundos da casa onde mora, na Avenida Guaíba, para instalar os equipamentos). No fim de 2017, o negócio engrenou. Os clientes que antes tinha de buscar começaram a aparecer de forma espontânea — geralmente indicados por outros —, e passou a investir mais tempo na produção, que hoje exige dedicação quase integral.
Atualmente confecciona pelo menos 10 tipos diferentes de barras de chocolates, do ao leite ao 100% cacau. Não sem antes fazer uma análise criteriosa da matéria-prima. Todo saco de cacau que chega da Bahia passa por um teste: com um alicate, corta cerca de 50 grãos ao meio e dispõe sobre uma tábua de madeira para verificar, através da cor, se a fermentação atingiu o ponto desejado. Só viram chocolate se pelo menos 80% delas estiverem em condições ideais.
— Hoje só na cheiradinha já sei quando (o grão) passou (do ponto de fermentação). Fica com cheiro de chulé — sorri.
Boné para trás e jeito de surfista
À semelhança do chocolateiro hollywoodiano, que já foi interpretado por Gene Wilder e Jhonny Depp, André tem estilo próprio. Passa longe, porém, de terno, gravata e cartola. Viciado em esportes (pratica surfe, vela e kite surf), veste-se de maneira informal, com camiseta, calça jeans ou bermuda, tênis esportivo e boné para trás. Fala pelos cotovelos e sorri com facilidade.
Aficionado pela fabricação artesanal, fez questão de mostrar à reportagem todo o processo — e degustar todos os chocolates. Também é ele quem entrega o produto a boa parte dos clientes, parcela do trabalho que considera das mais divertidas.
— Hoje tem muita gente interessada em saber o que está comendo, a origem, como é feito. Meu clientes são assim. É muito legal ir entregar chocolate e chegar em um lugar legal, tomar um café top — conta.
O nome da marca é a junção das primeiras sílabas do filho, Mathias, da esposa, Giovana, e do seu. A homenagem à família — que deve crescer em breve, com a chegada do caçula, Lucas _ dialoga com a própria trajetória. Influenciado pelas doces memórias da infância, quer que os filhos tenham boas recordações do trabalho que realiza em casa.
— Lembro de levar os coleguinhas no porão e eles dizerem: "bá, o André tem uma torneira de chocolate em casa!". Esses dias fiz uma visita aqui com os colegas do meu filho. Quero que a experiência que ficou para mim também fique para ele — diz.
O que é o Bean to Bar
É um conceito de produção artesanal no qual o chocolateiro acompanha todo o processo, desde a produção dos grãos até a confecção da barra. O intuito é preservar a origem do cacau (geralmente as barras vêm com informações sobre a colheita, o ano, o tipo e o lote), escolher produtores com critérios de sustentabilidade e controlar toda a produção. O chocolate é feito sem aditivos químicos, aromatizantes ou conservantes.