
Uma máxima atribuída a Benjamin Franklin diz que nada é certo na vida, exceto a morte e os impostos. Se vivesse na Porto Alegre do século 21 em vez dos Estados Unidos do século 18, o político poderia incluir um terceiro item à lista. Nada é certo na vida, exceto a morte, impostos e – em determinado momento da noite, na Cidade Baixa – encontrar o peruano Jose Martinez com uma sacola de incensos e um portunhol veloz debaixo do sorriso:
– Hola, já nos vimos hoy?
De domingo a domingo, Jose toma sopa, deixa o apartamento de um quarto alugado na Duque de Caxias pontualmente às 21h20min, e pega um ônibus até a Avenida Loureiro da Silva. Começa pelo Espaço Cultural 512 um périplo que só muda conforme os horários dos bares pelas ruas João Alfredo, República, José do Patrocínio e Lima e Silva. Sai com uma meta de arrecadação e só retorna com ela no bolso. A variável é a sola de sapato consumida.
– Tem segundas-feiras chuvosas em que saio desanimado, com los pies molhados e vendo uma loucura. E tem sextas-feiras que custo a vender algo. Entonces, em 30 anos, só aprendi que não posso escolher dias – conta.
Jose reclama de cansaço, artrose, ciático e falta de sol, mas o bate-pernas diário deixou o peruano com um físico inacreditável aos 63 anos. Sua história é longa e começa com a fuga da violência do grupo narcoterrorista Sendero Luminoso, na década de 1980. Aos 27 anos, Jose deixou pais e quatro irmãos em Lima para tentar a vida no Chile, Argentina e, finalmente, no Brasil, em 1989. Em 1996, obteve permissão de residência permanente. E por que Porto Alegre?
– Tentei trabalhar um verão em Florianópolis, mas não vendi nada. La gente compra incenso para disfarçar a maconha, mas na praia eles nem disfarçam (risos). Tentei o Rio, mas as distâncias eram muy longas. La Gáááávea, Botafoooogo, Ipaneeeema – lista Jose, revirando os olhos, enfadado.
Na capital gaúcha, encontrou bares próximos uns dos outros e clientes fãs de produtos esotéricos. De início, vendia incensos argentinos, mas aprendeu uma receita (secreta) com ingredientes naturais, o que os tornaria mais suaves e hipoalergênicos. Depois, os colore e perfuma conforme os Sete Raios Sagrados, uma ordem mística em que cada dia tem uma cor e um padroeiro correspondente. Em casa, tem um quadro para cada um e dedica a eles um incenso por dia.
– Só não sinto mais o cheiro, pois me acostumei. Sei que está perfumado quando uma visita comenta.
Não são muitas. Depois de passar o dia abordando pessoas, José não gosta muito de ser incomodado. Casou para tentar um visto na década de 1990, mas não gosta nem de falar da experiência de quatro meses. Fez amizades, mas nunca voltou a morar com alguém. Prefere passar o tempo livre solitário, lendo, se exercitando com pesos leves e estudando doutrina espírita. Vagar pela Cidade Baixa diariamente, julga ser um “karma de outra vida” pelo qual tem de passar.
– Já me gustó mais a cidade e o bairro. La gente ia para os bares para sentar, debater, construir ideias. Desde 2013, 2014 é sacola de plástico, sujeira, gritaria... – avalia.
Embora seja reconhecido “todo el tiempo” e peçam-lhe incensos do banco ao aeroporto, Jose é o único personagem dessa reportagem que nunca havia dado entrevistas. Talvez por isso, se despeça com um abraço acanhado, mas sincero.
– Gracias, amigo. Obrigado por ter reparado em mim.