Foram necessários anos de abandono e uma longa briga judicial para um patrimônio histórico que parecia invisível voltar a ser enxergado por quem circula pelo centro de Porto Alegre. Com risco de queda, a antiga Casa Azul, na esquina das ruas Riachuelo e Marechal Floriano Peixoto, motivou o isolamento do trecho pela Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) desde o último sábado (26), chamando atenção de quem passa pelo local. Apesar disso, prefeitura e proprietários não têm um plano para resolver a situação do imóvel, que definha há quase 20 anos e não pode ser demolido.
O jogo de empurra começou no fim da década de 1990, depois de um incêndio em uma ferragem ter fragilizado a construção, que jamais foi recuperada pelos proprietários. A questão foi parar na Justiça quando o Ministério Público ajuizou uma ação civil pública contra o município e os proprietários pelo descaso com o imóvel, pedindo providências. Enquanto o imbróglio se arrastava, a casa transformou-se em um risco real à circulação: há anos, a fachada é sustentada por tirantes e a parte térrea foi isolada por tapumes.
Em 2016, a Justiça entendeu que a demora na oficialização da casa como patrimônio histórico — o interesse foi anunciado na década de 1990, mas a inscrição no inventário municipal só se concretizou em 2008 — desobrigava os proprietários de conservarem o imóvel durante aquele período, o que agravou sua situação. O município foi então condenado a interditar o passeio público em toda a extensão da construção e também parte das duas vias.
Uma decisão de segundo grau determinou, ainda, a restauração da fachada, após apresentação de "projeto conjunto de restauração". O processo ainda tramita na Justiça. A Procuradoria-Geral do Município (PGM) estuda a possibilidade de pedir a expropriação do imóvel, que, diferentemente da desapropriação, não exigiria que o município pagasse qualquer valor aos proprietários. A prefeitura não sabe, no entanto, o que fará com o prédio caso isso ocorra.
No entendimento de um dos herdeiros da Casa Azul, Edgar Granata, o poder público é o responsável pela degradação da construção em estilo eclético, que data do começo do século 20. Ele diz que, por conta de uma interdição, os proprietários estariam proibidos de fazer intervenções na casa sem autorização legal.
— Com estacas ou sem, o prédio continua deslumbrante aos olhos de especuladores e outros como uma das construções mais lindas da arquitetura de Porto Alegre. Triste final — disse, por e-mail.
Ruas calmas e pedestres curiosos
Enquanto parte dos pedestres seguia indiferente seu caminho na manhã desta quarta-feira (30), muitos deles não resistiam em mirar, ainda que rapidamente, sobre os tapumes que encobrem a parte térrea do imóvel. Observavam um esqueleto com jeito de mal-assombrado, janelas quebradas, tela de proteção caída e uma rachadura central que reforçava o alerta: melhor não se aproximar.
— Não sei o que era essa casa, mas é bem bonita... Se fosse restaurada, né? Daria para preservar as memórias — refletia a aposentada Dalila Dias, que circulava a passos lentos e semblante pesaroso pelo trecho interditado.
A moradora da zona norte da Capital era das poucas a expressarem alguma compaixão pela casa. Para o chileno radicado em Porto Alegre José Agüero, 75 anos, o descaso com a construção foi tão cruel que só permitia defini-la com um adjetivo:
— É feia. Nunca foi cuidada, está suja e tem uma rachadura. Talvez até tenha uma história, mas, quando é pobre, não vale a pena recuperar. Eu não recuperaria.
— É uma casa bem antiga... Já era para estar no chão faz horas. Querem para patrimônio histórico, mas agora já está deteriorado — comentou o vigilante Maurílio Ramires, que trabalhou por anos em comércios nas imediações.
A interdição na quadra — por tempo indeterminado — também modificou a dinâmica das duas vias centrais. Desde sábado, quando o trânsito foi interrompido no trecho e as lotações que paravam na Marechal Floriano, entre a Rua Riachuelo e Avenida Senador Salgado Filho, tiveram o ponto deslocado para outras vias, o silêncio impera por ali. Três agentes da EPTC orientavam desavisados sobre os desvios.
— A essa hora, era uma barulheira de carro, buzinaço. O movimento ficou mais fraco — avaliou Angela da Silva Dias, 52 anos.
Funcionária de uma lanchonete na Marechal Floriano, ela estima que a ausência das lotações tenha corrido com cerca de um quarto de seus clientes, motoristas e passageiros das quatro linhas que param na via. Também não é fã da casa: além de achar esquisita a "mistura de Portugal com Barroco" da arquitetura do imóvel, como ela define, o local virou ponto de fuga de assaltantes, que pulariam para dentro dos tapumes para se esconder.
Dono de uma padaria quase ao lado da Casa Azul, Henrique Chaves, 30 anos, disse que o movimento mais calmo na via não teve impacto significativo sobre as vendas. Ele acredita que a circulação maior de pedestres, inclusive, tem ajudado a atrair novos clientes. Lamenta, porém, os transtornos causados pelo isolamento da área:
— É mais o incômodo. Não conheci a casa no tempo que era bonita... Se fosse restaurada, seria até mais lucrativo para mim, mas acho que a prefeitura tem outras prioridades. Vão demolir e vai acabar virando estacionamento, que é o que dá dinheiro.