Debaixo de cobertas esfarrapadas e organizadas sobre um colchonete gasto, com um gorro de um marrom há muito desbotado, o morador de rua Florisbaldo da Luz, 44 anos, viu resignado a noite cair, na segunda-feira (17), após um dos dias mais frios do ano em Porto Alegre. Ao redor dele, esperando os ônibus que as levariam de volta ao conforto do lar, passavam pessoas com casacos, cachecóis, luvas, os braços envolvendo o corpo, a expressão traduzindo os cerca de 6ºC que fazia no Centro da Capital.
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Ao lado de um amigo, Florisbaldo, que mora na rua há 12 anos, não reage com surpresa à notícia de que foi registrada, algumas horas antes, a tarde mais fria de 2017 no município. Ele conta que os dias, acabam sendo muito parecidos. A diferença, relata, é principalmente sazonal: no inverno, fica tudo pior, é mais difícil receber doações, conseguir se alimentar, encontrar uma mão amiga.
– Está frio, mas fazer o quê? Tem que enfrentar isso sozinho. Nós e Deus.
A resignação ecoa nos lábios rachados de frio de Carlos Alberto Medeff, 51 anos. Enfrentar o frio é tratado como apenas mais um obstáculo, a ponto de não merecer destaque na conversa entre eles. Naquele início de noite, foi a inevitabilidade das estações que havia pautado uma troca de ideias entre os amigos.
– Tem que ter inverno, tem que ter verão. Faz parte da natureza – sentencia Carlos Alberto.
De "cara limpa", como define o morador de rua, ambos dizem que preferem estar ali, visíveis em um ponto bastante movimentado da Capital, do que buscar cantos recônditos – mais silenciosos, explicam, porém também mais perigosos. À vista dos habitantes de diferentes municípios do Estado que embarcam e desembarcam na região, os moradores de rua afirmam que ficam mais aptos a receber doações de comida, de roupas. Enquanto o frio não passa, a esperança é de que a ajuda continue chegando.
Em outro ponto do Centro de Porto Alegre, em frente a uma loja, Vilmar da Silva, 45 anos, e Hélio da Silva, 59 anos, esperam a chegada do sono jogando cartas. Em cada lado da mesa adaptada para o passatempo se espalham cobertores e lençóis que formam, nas laterais da fachada comercial, pequenos quartos improvisados ao ar livre. Questionado sobre como lidar com o ar gelado da noite, em um local suscetível às intempéries, Vilmar não titubeia:
– O cara que mora na rua tem que se prevenir. Tem que estar preparado para qualquer tempo.
Para ele, isso significa guardar os cobertores doados, mesmo os mais velhos, e manter as roupas de inverno e também de verão à mão o ano todo para que, quando dias frios como esse apareçam, seja possível, mesmo diante dos obstáculos, se proteger do frio.
Vilmar e Hélio – assim como Florisbaldo e Carlos Alberto – dizem que preferem não recair à tentação de uma companhia frequente entre os moradores de rua: a bebida alcoólica. Nem assim, contudo, demonstram vontade de procurar abrigo em albergues.
– É embaçado. É muita regra.
– Tem que chegar na hora certa e sair na hora que dizem. Faça sol, frio ou chuva. Não me acostumo com isso – diz outro morador de rua, João Pedro dos Santos.
Aos 40 anos, João Pedro diz que prefere a liberdade da rua. Há cerca de quatro anos dormindo em uma praça próxima à Cidade Baixa – bairro boêmio de Porto Alegre – com outros moradores de rua, um deles com dificuldades de locomoção, ele destaca que as últimas semanas têm sido "complicadas": foram dias de forte chuva, de bastante calor e de muito frio. Diante da perspectiva de que as temperaturas baixas continuarão, ele apresenta a mesma resignação esperançosa dos moradores de rua do Centro, que nem conhece.
– Na rua, não tem jeito. A gente conta com ajuda de muita gente boa, mas no final tem é que aguentar tudo sozinho.