
A definição de quem somos sempre inclui, por tabela, a noção de quem não somos. Desde maio, o ciclo de debates NósOutros Gaúchos, realizado pelo Departamento de Difusão Cultural da UFRGS e pelo Instituto APPOA, vem discutindo essa tensão entre o "eu" e o "outro" aplicada ao Rio Grande do Sul, com a presença de convidados de diferentes campos intelectuais.
No último encontro, marcado para o próximo sábado, 3 de outubro, das 9h às 17h, no Salão de Atos da UFRGS (Av. Paulo Gama, 110), uma das convidadas é a psicanalista Caterina Koltai - socióloga mestre em sociologia pela Sorbonne e doutora em psicologia clínica pela PUC-SP. Por telefone, de São Paulo, ela adiantou alguns dos temas que vem debater na Capital, ao lado do historiador uruguaio Gerardo Caetano Hargain, do compositor José Miguel Wisnik e do professor Luís Augusto Fischer. Informações e inscrições em ufrgs.br/difusaocultural/nosoutrosgauchos/encontros.php.
A senhora vem falar em um seminário sobre a identidade gaúcha. O que pretende acrescentar ao debate?
Pretendo questionar esse conceito de identidade do ponto de vista da psicanálise e opor a isso a noção de estrangeiro. E trabalhar um pouco os limites da ideia de comunidade. Porque quando estamos falando em cidade, ou Estado, fica implícito que falamos em uma fronteira entre aquele que está dentro e aquele que está fora. Vou pensar como isso se reflete em um Estado como o Rio Grande do Sul, do qual sabia muito pouco. Aprendi muito ao ouvir as pessoas que falaram nesse colóquio antes de mim, sobre o Rio Grande como um Estado constituído por migrações, por pessoas que vieram de várias partes do mundo, em vários momentos. E, por outro lado, é um Estado que faz fronteira com outros países, é de fato um limite territorial.
Essa ideia do Estado como espaço de fronteira se mistura com a noção, forte no imaginário local, de que somos uma unidade à parte. Ao ponto de serem recorrentes por aqui tiradas de humor que tratam os gaúchos como estrangeiros no território nacional.
Eu ouvi coisas assim e achei interessante. Porque, de fato, somos todos estrangeiros, mas ter o humor de se reconhecer estrangeiro já é uma maneira de curar a própria ferida. Toda ferida, quando você consegue não levá-la tão a sério, é o primeiro caminho para parar de sofrer. Então eu acho que esse humor é algo muito interessante.
Ao mesmo tempo, a ideia exacerbada de "preservação da tradição", reforçando a diferença e o não pertencimento, não representa também o ponto em que essa questão perde o humor?
Concordo. Toda vez que essa diferença é levada ao extremo de um discurso como "olha o que fizeram para a gente" ou "somos assim porque outros fazem alguma coisa conosco", é perigoso. Daí oponho a isso o humor.
O Rio Grande sempre se orgulhou do papel do imigrante em seu passado. Agora, estrangeiros vindos do Senegal e do Haiti, por exemplo, começam a aportar por aqui e são alvo de tensões por parte da população. Por que o imaginário está entrando em choque com a prática?
Há aquele imigrante mais ou menos estrangeiro no qual muitos conseguem se reconhecer, há o estrangeiro absoluto no qual fica cada vez mais difícil se reconhecer. Eu, por exemplo, sou filha de imigrantes húngaros. E o que a Hungria está fazendo agora me dá vontade de chorar, porque eu mesma sou uma imigrante. Só em 1956 a Hungria viu 300 mil pessoas de seu povo pedirem asilo em outros países, e agora não consegue dar asilo para ninguém. Eu estou trabalhando aqui em São Paulo em clínica com um grupo de imigração que inclui haitianos, africanos, alguns sírios, e mesmo aqui em São Paulo eles estão sendo não necessariamente bem acolhidos. Eles também tinham uma outra fantasia do Brasil que, evidentemente, nunca se realiza, porque não existe paraíso.
Escultura do Parque Pedras do Silêncio, entre Nova Petrópolis e Gramado: imaginário local do imigrante
Essa fantasia do imigrante não é nova, não? Muitos autores que abordaram a imigração italiana exploraram a relação que os viajantes faziam entre o Brasil e o "país da Cocanha".
Sim, porque o sujeito precisa construir para si uma fantasia de um projeto para poder abandonar sua língua, seus parentes vivos, a terra em que seus antepassados morreram. Ninguém abandona tudo isso facilmente. A migração é sempre uma dor profunda. Acho que até para ter força, para se deixar tudo isso para trás, se cria a ilusão de um destino paradisíaco. E o Brasil durante muito tempo alimentou essa fantasia, pelo tamanho, pelo clima, por uma certa assimilação real dos imigrantes que já haviam chegado, apesar das dificuldades, sem grandes desastres naturais, pouco atingido por guerras e conflitos. O imigrante precisa dessa fantasia, mas depois ele cai na dura realidade. Hoje é diferente pensar em acolher, por exemplo, um italiano, já que muitos têm antepassados na Itália, e acolher os haitianos. É neste momento que o Brasil vai se defrontar com sua real capacidade de acolhimento, porque não há identificação individual imediata.
A insistência em não ver esses imigrantes como semelhantes ecoa uma sociedade que situa sua população negra também como "estrangeira".
Sim, o Brasil situa seus negros como estrangeiros. O Brasil trouxe o negro para seu território como escravo. E essa é uma ferida que não foi tratada. O Brasil diz que não é racista. Não é assim. Pode ser menos racista do que o Sul dos Estados Unidos foi, por exemplo, mas estamos longe de ser um país sem racismo.
A senhora já escreveu que o estrangeiro é um elemento que marca o cruzamento entre o psicanalítico e o político. Pode explicar melhor esse conceito?
Eu diria que o estrangeiro ao mesmo tempo em que fascina, atrai, ele também repele. Ele provoca, de acordo com um termo do Lacan de que gosto muito, "amódio". Alguns psicanalistas aí do Sul fizeram trabalhos muito bonitos sobre isso, sobre o fascínio do exótico ou a eliminação do outro no racismo. E é difícil uma abertura real de fronteiras política e economicamente. É fácil manipular o medo através da figura do estrangeiro. Ao longo da história humana eles viram o bode expiatório para tudo o que não funciona.
NÓSOUTROS GAÚCHOS
3 de outubro, das 9h às 17h, na Sala II do Salão de Atos da UFRGS (Av. Paulo Gama, 110)
Convidados: Caterina Koltai (socióloga e psicanalista), Gerardo Caetano Hargain (cientista político e historiador), José Miguel Wisnik (músico, professor e escritor) e Luís Augusto Fischer (escritor e professor de teoria literária).
11h - Concerto de Renato Borghetti.
20h - Aula-espetáculo de Vitor Ramil com mediação de Flávio Azevedo.
Informações: 3308-3034
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