* Socióloga do Grupo de Assessoria a Imigrantes e a Refugiados GAIRE/SAJU/UFRGS e doutoranda em Sociologia pela UFRGS
Um clima de medo tem permeado as notícias sobre o fluxo migratório para a Europa nos últimos meses. A imigração é tida como uma ameaça a ser combatida: "Os imigrantes roubarão os empregos e é preciso fechar as fronteiras e proteger as nações". Esse discurso incessantemente reproduzido parece plausível. No entanto, é preciso ultrapassar o aparente e refletir acerca da complexidade que o fenômeno migratório traz, para além de estatísticas, legislações e documentações exigidas. A questão que se faz urgente e que motiva esta coluna é: qual o perigo, qual medo a presença de imigrantes desperta nas sociedades? As informações e o capital econômico circulam livremente: por que imigrantes não podem circular?
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman tem discutido a liquidez das relações sociais em suas obras recentes. Esse tipo de vida líquida que, segundo o autor, nos permeia, faz com que as relações sejam uma constante incerteza. Em seu livro Vidas Desperdiçadas, Bauman produz reflexões bastante pertinentes para pensar o tema das imigrações na atualidade, referindo-se aos refugiados, aos deslocados, aos sans papiers, como "refugos da globalização". Evoca Bertolt Brecht em A Paisagem do Exílio, ao definir estas pessoas como "arauto de más notícias". Desde que a crise econômica começou a assolar a Europa, em meados da década passada, a relação estabelecida com os imigrantes foi modificada.
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Cabe ressaltar aqui que generalizar a Europa como um bloco homogêneo e estanque não é adequado, pois cada país daquele continente tem uma história específica e uma trajetória particular ao lidar com fluxos migratórios. Os países colonizadores do século 19 veem com condescendência os imigrantes, condescendência arraigada num sentimento de culpa pela pilhagem que realizaram em suas então colônias. Em alguns contextos, a presença de imigrantes era tolerada como forma de sanar suas dívidas com o passado. Tal cenário se modifica com o advento da crise econômica - e as reações à presença dos imigrantes se mostram mais agudas e declaradas. A história de pobreza e dificuldades que o imigrante carrega consigo pode se repetir em outros locais do planeta que antes pareciam blindados. Como lidar então com essa situação?
Quando em crise, a esfera econômica da vida social, que diz respeito às condições de sobrevivência, acaba por modificar vários padrões. Os seres humanos são tolerantes com os demais, desde que tenham as mínimas condições materiais para sobreviver. Quando a subsistência material se vê ameaçada, o risco do outro ser visto como inimigo é grande. Neste contexto, questionar terminologias utilizadas como naturais é pertinente. O termo "imigrante" traz consigo a ideia de pessoa em fuga de seu país de origem por conta de dificuldades econômicas. Observa-se que um novo termo tem sido utilizado para identificar o cidadão de outra nacionalidade que tem uma condição econômica superior e que se desloca para outro país: o "expatriado". Para ser classificado como imigrante ou como expatriado, basta uma rápida revisão da história de vida do indivíduo e o recorte de classe social estará evidente. Enquanto o expatriado é visto positivamente, com base nas contribuições que pode oferecer ao país de acolhida, o imigrante sofre um processo contrário, sendo classificado como parte de um segmento social descartável nas sociedades que o recebem. Tal insignificância pode ser facilmente observada em cenários de crise: imigrantes geralmente são os primeiros a perder seus postos de trabalho, ou devido à necessidade de enviar dinheiro para suas famílias nos países de origem, se submetem a permanecer trabalhando sob condições difíceis, situação que gera muitas vezes um aumento da discriminação por parte da população local.
Em um trecho do livro Reflexões sobre o Exílio, Edward Said afirma que a cultura ocidental moderna é, em larga medida, obra de exilados, imigrantes e refugiados. As notícias sobre o tema da imigração raramente abordam o contexto de vida ou os sentimentos dos imigrantes, que são sempre retratados como um fardo a ser carregado. Os imigrantes são reduzidos a um número e a uma determinada nacionalidade. A contribuição que a diversidade de origens oferece à sociedade de destino raramente é citada. Uma abordagem menos policialesca do tema poderia melhorar muito a percepção coletiva sobre o assunto. Cabe lembrar que as concepções de Estados nacionais e fronteiras são construções sociais. Assim sendo, podem ser desconstruídas e reedificadas, calcadas em valores como tolerância e diversidade. A modificação dos padrões de consumo e das relações entre indivíduos pode alargar e democratizar a participação na vida social, independente de nacionalidade e classe. Sabe-se que o fato de um país ter tido sua história baseada nas imigrações nem sempre faz com que sua população aceite melhor tal fenômeno atualmente. No entanto, refletir sobre isto já é um belo começo.