
A volta do recesso parlamentar significou o retorno do embate que já se desenhava no primeiro semestre entre as posições do Legislativo e do Executivo. Em meio a sinais de crise financeira e com a presidência batalhando por um ajuste fiscal, a Câmara dos Deputados aprovou, nesta semana, medidas que vinculam remunerações de algumas carreiras aos salários de ministros do STF e criam despesas extras de R$ 2,3 bilhões.
O pacote é tão problemático que vem sendo chamado de "pauta-bomba", por seu impacto no orçamento. Também foi a semana de defecções anunciadas na base de apoio, com a saída de PDT e PTB.
Ao analisar o momento, o professor-titular de ciência política da USP José Álvaro Moisés afirma que o governo está às vésperas de sua maior crise institucional. Diretor do Núcleo de Pesquisas de Políticas Públicas da USP e editor do site Qualidade da Democracia (qualidadedademocracia.com.br), Moisés concedeu a seguinte entrevista
ao PrOA por telefone na última sexta-feira.
Quais devem ser as consequências do desgaste entre Executivo e Legislativo?
O governo vem, desde o início do segundo mandato da presidente, se esfarinhando. Vem perdendo base, capacidade de coordenação e, progressivamente, perdeu legitimidade,tanto do ponto de vista da opinião pública como da base aliada. Partidos como PDT e PTB proclamaram-se independentes, e o PMDB não apenas vem negando apoio à presidente, levando-a a uma série de derrotas e exacerbando a tensão, mas também, como se conclui das últimas manifestações do vice-presidente Michel Temer, se prepara para assumir a presidência na eventualidade de um impeachment da presidente. Na minha opinião, estamos tendo um acirramento entre os dois poderes que pode levar a uma crise institucional. Não estamos ainda na crise, mas ela se anuncia, e a raiz disso está no sistema presidencialista de coalizão criado com a Constituição de 1988. Com esse sistema, há uma relação completamente assimétrica entre Executivo e Legislativo, e foi assim em todos os governos depois de 1989. Menos no da presidente Dilma. Por quê? Como o PMDB resolveu reagir à política de predomínio do PT, com base nas posições conquistadas por Eduardo Cunha na Câmara e por Renan Calheiros no Senado, esse líderes estão usando o poder que têm para anunciar uma maior autonomia do Legislativo em relação ao Executivo. Isso em si mesmo não seria negativo. O problema é que isso está ocorrendo em um contexto, por um lado, de autodefesa desses parlamentares por terem sido denunciados na Operação Lava-Jato, e por outro, de hostilidade em relação ao governo. Ou seja, é uma crise para ninguém botar defeito.
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Uma imagem do Parlamento como um poder inoperante, por vezes usado como balcão de negociatas, vinha se disseminando há anos. Agora que o Congresso está acuando a presidente, que efeitos isso tem na imagem da casa?
As pesquisas que temos conduzido na USP já há alguns anos mostram que o Congresso é uma das instituições considerada menos digna de confiança pela população. Na pesquisa de 2006, essa taxa de desconfiança estava em 90%. Na que fizemos em 2014, subiu para 92%. Agora, o que nos preocupa é que, quando perguntamos se a democracia poderia funcionar sem o Congresso, o número dos que respondem "sim" pulou de 30% em 2006 para 45% em 2014. Isso corrobora a constatação geral de que o Congresso estava desgastado. Acho, no entanto, que se anuncia uma possibilidade de mudança disso na medida em que o Congresso se autonomizou em relação ao Executivo e passou a buscar uma pauta de temas que aparentemente fazem parte do imaginário pelo qual a opinião pública se move neste momento: maioridade penal, questões relativas ao mandato presidencial. Mas aqui é preciso ter cuidado na análise, porque é provável que esses passos tomados pelo Parlamento levem a uma melhoria de imagem, mas, ao mesmo tempo, alguns deles apontam a irresponsabilidade das lideranças. As últimas aprovações desta semana têm um efeito extremamente negativo sobre a política de ajuste. Da mesma maneira, não está inteiramente clara a questão dos aumentos dos aposentados, que deveriam, segundo a Câmara, acompanhar o ajuste do mínimo, o que tem um impacto nas contas. Então acho que a tendência vem apontando em duas direções. Uma, a de trazer para dentro do Congresso temas de interesse da população, incluindo algumas questões conservadoras extremamente fortes, como segurança e comportamento, e a outra direção é que o Congresso, nesse élan, está adotando medidas populistas que não necessariamente vão ter efeito positivo a médio e a longo prazo.
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Ao mesmo tempo em que temos uma década e meia de um governo vinculado à esquerda, a última eleição consagrou um Congresso de matriz conservadora, o que vem se comprovando nas votações de temas como a maioridade penal. Isso amplifica essa disparidade entre Executivo e Legislativo?
Sim, porque como o Executivo é ocupado por um partido de esquerda que negou sua própria origem e se envolveu em desmandos que na verdade são negativos em relação ao papel que a esquerda pode ter nas transformações da sociedade, houve uma reação conservadora no Congresso, fruto das eleições de 2014. Isso remete para um paradoxo importante da política brasileira. Temos um governo que vem sendo dirigido por um partido de esquerda há uma década e meia, e a presença da esquerda no governo, em vez de suscitar um debate, uma persuasão, levar a uma maior adesão de segmentos da população a políticas de esquerda, levou, ao contrário, a uma crise da imagem desse partido associado à perspectiva de esquerda.
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Eduardo Cunha, à frente da Câmara, tenta sabotar o governo, mas as medidas aprovadas impactarão mesmo que Michel Temer assuma numa provável saída de Dilma. Não é uma tática camicase?
Aí será preciso acompanhar o desenvolvimento, ver que capacidade de agregação uma alternativa liderada pelo PMDB poderia ter. Não está claro isso. O que está claro é que Michel Temer está dando uma série de passos nessa direção. Ele acabou de fazer um discurso que remete para a ideia de união nacional, de agregação de forças acima de partidos, um papel para o qual ele se apresenta. Em parte, o que está se sinalizando é que o PMDB está conversando com o PSDB. Isso pode significar que a possibilidade de impeachment da presidente está se tornando real. Não tanto porque perdeu legitimidade, mas porque perdeu a base de apoio. São fatores independentes. Ela poderia perder legitimidade e não passar por impeachment. Poderia desarticular a base, inclusive com a retirada de alguns partidos, e isso não suscitar uma crise de governo. Agora, o problema é que neste momento, com crise econômica, incapacidade de articulação, perda de popularidade, o PMDB busca o apoio do PSDB para substituir o atual governo.