
* Psicanalista
Existiria um componente psicológico na crise pela qual passa o nosso Estado? A autoestima gaúcha, esse orgulho de ser o que somos, nos ajuda ou nos atrapalha para perceber e responder à atual situação?
É difícil saber qual a verdadeira natureza da crise. Pessoas ligadas aos governos anteriores parecem concordar que ela é duríssima, mas não incontornável. Acusam o governador atual de tornar as coisas ainda piores, para fornecer remédios mais amargos do que necessário. Seja lá quem for que tenha razão, não há dúvida de que a crise chegou. O fantasma, ainda que improvável, de uma intervenção, levou o governador a Brasília esta semana.
O atual governo apita um samba de uma nota só: acabou o dinheiro e a única saída é fazer cortes. Repare, como sempre, a austeridade é para os outros: primeiro aumentou seus próprios salários (o governador inclusive, dias depois, ao ver que pegou mal, recuou) para depois jogar a culpa da situação no peso da folha do funcionalismo. Do lado do eleitor, a atitude não é melhor. Como se tem dito, nosso Estado já não escolhe governos, contenta-se com destituir a cada quatro anos quem estiver no poder. Faz escolhas mais na negativa do que na proposição de um programa.
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O eleitor está com uma postura de consumidor e não de cidadão. Isso significa que as pessoas não se incluem nos problemas, apenas cobram um atendimento, como se seu Estado fosse intrinsecamente rico - e de onde viria o dinheiro, não lhe interessa. Mescla, então, a reivindicação de cliente insatisfeito com a de filho mimado.
Se há um mito que devemos rever, seria o da nossa suposta politização. Boa parte da nossa crise é fruto de um radicalismo político estéril que não gera soluções, jamais negocia. É estranho que aqui se considere signo de politização não a capacidade de fazer sínteses e avançar, mas sim a de gerar antagonismos.
Quando eu era criança, o Brasil considerava-se pobre, de terceiro mundo, subdesenvolvido. Nada mudou essencialmente, as grandes reformas nunca foram feitas, mas passamos a considerar-nos ricos. Nossa exigência peremptória de instituições públicas melhores ignora o tempo, o investimento e a lenta construção que benesses como a saúde pública, a segurança e a educação de um povo requerem. Poucos parecem se dar conta que a saída passa por gerar mais riquezas, inventar novas coisas, aprimorar as instituições, participar mais da vida pública e não apenas reclamar. A atual posição política do eleitor assemelha-se mais a uma queixa misturada à afirmação de que não temos reponsabilidade pelo que acontece. A falha é sempre dos outros.
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Voltando à questão: a razão da nossa crise não é psicológica, é política e econômica, é óbvio. Porém, no tempo entre perceber que se tem um problema e respondê-lo, entram fatores psicológicos.
Quando um profissional recebe um paciente que precisa de ajuda, a primeira coisa que observa é quanto tempo o paciente esperou para pedi-la, pois isso está ligado ao quanto ele suporta o mal-estar que o aflige e ao quanto o negava - ou segue negando. Esse é o impasse do Rio Grande, seguimos negando o tamanho da crise. Ainda não conseguimos, como conjunto, assumir que o Estado rico que éramos acabou.
E é nesse ponto que nosso orgulho gaúcho nos atrapalha. Não nos vemos como somos, mas como aquilo que já fomos. Temos um Estado jovem, mas de experiências densas, com uma história política carregada de sentidos, berço de estadistas, que faz com que ser gaúcho não seja qualquer coisa. É uma identidade muito pregnante, ter orgulho disso é quase um caminho natural.
A questão é que orgulho e realidade precisariam caminhar juntos. Caso contrário, teremos o mesmo mecanismo da inflação: quando uma moeda fica sem lastro, precisamos de cada vez mais para comprar o mesmo. Na autoimagem, quanto menos realidade, mais orgulho para contrabalançar. Quando encontramos um excesso altaneiro em alguém, geralmente é menos reflexo da grandeza genuína e mais cortina de fumaça para compensar uma carência.
É difícil sair dessa cilada de orgulho compensatório, pois ele tornou-se o senso comum do nosso tempo narcísico. Vivemos a crença de que uma autoestima elevada, o orgulho pessoal, ajudaria muito no caminho do sucesso. O sermão contemporâneo é: ame-se, valorize-se e o mundo te respeitará! Apenas esqueceram de combinar essa arenga com o mundo...
Na vida prática, os psi de todos os naipes dão-se conta de que essa correlação pouco importa: temos nas duas pontas contraexemplos, gente que consegue muito na vida sem autoestima robusta e pessoas bem resolvidas consigo mesmas que são um rotundo e crônico fracasso social. Pensar com a bússola da autoestima mais desnorteia do que ajuda.
Mas, como a vida não é fácil para ninguém, nos apegamos, tanto individual como coletivamente, a saídas compensatórias para nossa fragilidade, exercendo atitudes que se baseiam na negação do problema e na colocação de uma ilusão em seu lugar. Existem variações: por exemplo, a arrogância é a prima mal-educada da autoestima sem lastro. Um tapa-furo para um ego frágil, como quase todos os autoelogios.
É importante lembrar que propostas totalitárias - cujo ápice foi o nazismo, mas também vale para Mussolini, Franco e Salazar, que levaram o mundo ao caos no século passado -, tiveram como combustível o abalo narcísisco de povos economicamente arruinados. Temos que cuidar uns dos outros, admitir nossos problemas, antes que a sedução da arrogância fascista o faça.