* Psicanalista, membro da APPOA, e diretor executivo do Instituto APPOA.
Quando nos perguntamos sobre os modos de ser gaúcho e suas identidades, surgem diferentes respostas. Quem vem de fora, por exemplo, surpreende-se com o fato de que todos saibam a letra e cantem com entusiasmo o hino rio-grandense, coisa que não acontece nos demais Estados do país. Cantamos convictos "sirvam nossas façanhas de modelo a toda Terra", inclusive aqueles que não fazem ideia a quais façanhas o hino se refere.
De onde vem essa necessidade de afirmar "sou gaúcho com muito orgulho"? E para onde nos leva? Sem dúvida, temos muitas qualidades de que nos orgulharmos, mas é para tanto? O mito de Narciso encantado com sua imagem refletida na água, e que o leva à míngua, parece tecer certo paralelo aqui.
Claro, o hino foi composto durante a Revolução Farroupilha. Chegamos a ser uma república independente do Império por 10 anos. Refere-se também à valentia, coragem, violência e sangue com que os estancieiros portugueses expandiram nossas fronteiras, conquistando o território dos espanhóis, dizimando as tribos indígenas que habitavam a região e destruindo os Sete Povos das Missões jesuíticas.
Segundo o historiador Décio Freitas, o RS é um dos poucos casos em que são os vencidos que contam sua história, o que inevitavelmente leva a certo enaltecimento e mitificação dos feitos farroupilhas.
Por outro lado, uma de nossas características frequentemente destacadas é a dificuldade de fazer as coisas acontecerem por aqui. Poucos discordam, dentro e fora do Estado, de que é mesmo mais difícil no RS. Diante de uma proposta de trabalho, logo vem a pergunta desconfiada: "O que tu vais ganhar com isso?". Na construção de consensos, seguramente não servimos de modelo.
Esses traços culturais gaúchos se expressam de muitas formas e em muitos contextos, promovendo atritos, desconfiança, dificultando relacionamentos, emperrando projetos, bem como nosso desenvolvimento em diferentes setores. É comum ouvir a expressão caranguejada, referindo-se àqueles que logo torcem contra e criticam quem procura realizar. Entre nós predomina também o grenalismo, em que a rivalidade facilmente chega ao passional e à intolerância. Cultiva-se sem pudor, aliás com certo orgulho, a cultura da secação, que pode chegar ao extremo de quase ser mais importante que o outro perca do que o seu ganhe. A rivalidade GreNal é logo associada, de modo superficial, a de chimangos x maragatos.
Aqui se coloca uma resposta possível à nossa pergunta inicial a partir do conceito freudiano, retomado por Lacan, de que grandes conflitos da humanidade são desencadeados pelo narcisismo da pequena diferença, ou seja, pela diferença mínima entre um traço de identificação e outro. Tomados no registro imaginário do narcisismo, um traço parece inconciliavelmente diferente de outro, e leva facilmente à violência de uma luta de vida ou morte.
O diferente no registro do imaginário é intolerável, e deve ser eliminado, pois quebra o espelho narcísico. A perda da imagem de si mesmo é insuportável: Narciso prefere morrer (ou matar) a suportar não ter refletida perfeitamente sua imagem.
A diferença torna-se suportável e dialogável somente a partir do registro do simbólico. O simbólico possibilita ao eu do narciso dar-se conta de que seu eu é outro, pois vem do outro. Tanto do outro seu semelhante, quanto do Outro simbólico, o Outro da linguagem, que permite que o diálogo com a diferença se estabeleça.
Diante de nossas dificuldades de lidar com a diferença, fica a pergunta: em quê, onde, entre nós, o simbólico falha, para que o narcisismo da pequena diferença nos tome a dianteira?
Uma hipótese histórica-psicanalítica: no totalitarismo, a palavra do outro não tem lugar, e é reprimida com violência. A falha simbólica - falha que impossibilita a dimensão do diálogo com as diferenças, fecha o espaço de negociação e abre as portas da barbárie - provocou o rompimento do bloco histórico da oligarquia pecuarista farroupilha e desencadeou uma guerra civil, fratricida, entre federalistas maragatos e republicanos chimangos em 1893. Do lado republicano, o positivista Julio de Castilhos inventou a ditadura constitucional no Brasil, em que todo o poder emanava exclusivamente do Executivo, e seu partido ficou no comando por mais de 30 anos.
Da guerra da degola, um verdadeiro holocausto dos pampas, restaram como herança as marcas de um ódio banhado em sangue. Pensando bem, comparando, o grenalismo é um avanço civilizatório, a democracia também. Sinalizam, entretanto, que ainda temos muito que simbolizar.
NÓSOUTROS GAÚCHOS
A partir do dia 6 de maio, às 20h30min, no Salão de Festas da Reitoria da UFRGS (Avenida Paulo Gama), tem início o projeto NósOutros Gaúchos, que prevê cinco encontros até o mês de outubro para discutir a identidade dos gaúchos, seus sintomas sociais, a forma como lida com seus traumas. A partir de 6 de maio, às 20h30min, até outubro, no Salão de Festas da Reitoria da UFRGS.
O primeiro encontro, com o título Por que Colocar NósOutros Gaúchos em Questão? Quais São Nossos Sintomas Sociais? Qual o Mal-Estar e Sofrimento que Produzem?, terá a participação de Deborah Finocchiaro, Donaldo Schüler, Luiz Osvaldo Leite, Tau Golin e Jaime Betts.
Estão previstos na programação também um ciclo de quatro longas-metragens - entre eles os elogiados Castanha, da Davi Pretto, e Os Famosos e os Duendes da Morte, de Esmir Filho - e um fórum preparatório para os participantes. Mais informações na página oficial do projeto: ufrgs.br/difusaocultural/nosoutrosgauchos
NósOutros Gaúchos é uma realização do Instituto APPOA da Associação Psicanalítica de Porto Alegre e do Departamento de Difusão Cultural da UFRGS.