Na próxima terça-feira completam-se 30 anos da morte do político mineiro Tancredo Neves, morto logo depois de eleito o primeiro presidente civil após duas décadas de ditadura militar. Sua morte, sem conseguir tomar posse, comoveu o país por vários elementos simbólicos associados a ela. Agora, uma alentada biografia chega às livrarias. Tancredo Neves: A Noite do Destino (Civilização Brasileira, 868 páginas, R$ 80), do jornalista José Augusto Ribeiro, se dedica mais a esmiuçar a atuação política do que a trajetória particular do personagem. Jornalista com passagens pelas redações do jornal O Globo e da TV Bandeirantes, Ribeiro também escreve de uma perspectiva pessoal: foi assessor de imprensa de Tancredo na eleição presidencial de 1984. Ele concedeu a seguinte entrevista por telefone.
A biografia esteve 20 anos em produção. Por que tanto tempo?
Porque Tancredo viveu três vidas políticas em uma só. Foi ministro da Justiça do Getúlio Vargas, depois primeiro-ministro na crise que se seguiu à renúncia do Jânio Quadros e muito mais tarde se elegeu presidente. E ele foi o primeiro opositor à ditadura de 1964, embora nem sempre se diga isso. Na noite mesma em que o presidente do Senado, Moura Andrade, declarou vaga a Presidência e convocou o presidente da Câmara, Ranieiri Mazilli, a tomar posse, ele se levantou gritando: "Canalha, canalha!". Era um homem pouco dado a destemperos verbais, mas naquele momento reagiu violentamente. Também foi o primeiro a vaticinar que aquilo não seria um golpe "transitório".
Tancredo emerge de seu retrato como conselheiro próximo dos presidentes com quem trabalhou, mas até ser candidato à Presidência foi um homem com atuação mais de bastidores do que de Executivo. Por que isso?
A visão dele era a do que se chama "político mineiro", seu objetivo era ser governador de Minas Gerais. Eu me lembro que ele dizia que a política era como a vida militar: um oficial pode ter quase certeza de que, por merecimento ou por antiguidade, vai certamente chegar a coronel. Agora, para passar disso, vai depender do destino. O próprio Tancredo dizia que o político mineiro de sua geração que ele considerava o mais qualificado para chegar à Presidência seria o Milton Campos, governador mineiro de 1947 a 1950. Em 1955, foi eleito presidente o Juscelino. A eleição seguinte seria em 1960, e Campos não pôde ser candidato porque não havia condições políticas, na época, de um político mineiro suceder outro na Presidência. Então Tancredo sempre teve como seu horizonte máximo o governo de Minas.
Como Tancredo se torna, então, o nome de consenso para a presidência?
Quando foi eleito governador, na primeira eleição direta desde 1965, o país estava farto da ditadura militar, e os próprios militares, segundo disse o general Leônidas Pires Gonçalves em uma entrevista, estavam pensando em uma alternativa para deixar o governo, porque o modelo estava esgotado, as forças armadas estavam desgastadas pelo exercício continuado do poder. Surgiu então a figura de Tancredo como a possibilidade de uma transição pacífica da ditadura para a democracia. A outra corrente do PMDB, a do confronto eleitoral, não tinha percebido que a cada avanço da oposição nas urnas, o governo vinha com novos casuísmos. Por exemplo, o MDB avançou muito na eleição de 1974 e logo depois veio o pacote eleitoral de abril de 1977. Passando por esse confronto, não tinha como acabar com a ditadura. A luta armada já havia se desarticulado, e Tancredo repudiava soluções violentas. Mas ele relutou muito em aceitar a candidatura, ele não queria interromper sua atuação como governador de Minas para se lançar naquele projeto.
Sua biografia recupera também o papel de articulador de Tancredo em vários governos. Falta uma figura como ele hoje, em um momento em que o Congresso encurrala a Presidência?
Falta completamente. Tancredo foi um dos principais articuladores da candidatura do Juscelino à Presidência, mas não foi ministro do Juscelino em momento algum. Ele era uma espécie de conselheiro invisível. Da mesma forma, foi um conselheiro do Jango. Quando Goulart aceitou o parlamentarismo, já pensava em Tancredo como primeiro-ministro, mas ele só aceitou depois de uma eleição interna em seu partido, o PSD, que não era o mesmo do Jango, o PTB. Mas Tancredo era já a primeira escolha do Jango, porque havia um grande laço ligando ambos, e Brizola: o legado de Getúlio Vargas. Por isso, um dos primeiros compromissos de campanha de Tancredo na eleição para presidente em 1984 foi visitar o túmulo de Getúlio em São Borja.
Na biografia o senhor relembra boatos que se seguiram na esteira da morte do presidente, entre eles o de que ele havia sido assassinado. Ao começar o livro sabia que teria de abordar isso?
Olha, há duas semanas, numa entrevista em São Paulo, essa pergunta me foi feita pela milésima vez: "Tancredo foi assassinado?". A minha resposta é que eu não tenho elementos para provar isso. Agora, uma coisa que posso provar, e eu começo o livro dizendo isso, é que ele fez o primeiro comício de sua campanha, em Goiânia, em setembro de 1984, sob ameaça de morte. Eu fui testemunha do momento em que ele teve notícia dessa ameaça, e ele disse que aquilo era uma tática de intimidação que ele não aceitaria. Ele foi ao comício, falou no comício... Se no começo da campanha ele já havia sido ameaçado, por que não poderia haver algum aloprado querendo ameaçá-lo com ele eleito? Não posso afirmar que ele foi assassinado, mas não posso deixar de discutir a hipótese.
Como o senhor avalia hoje o legado de Tancredo?
Tancredo fez falta naquele momento e faz falta hoje. Não como presença física, mas como herança política. Entre outras coisas, está fazendo falta a competência política que ele tinha. Ele sabia se informar, não era de adivinhar. Ele deduzia que alguma coisa ruim poderia acontecer e intervinha antes que acontecesse. E isso faz falta hoje, não há dúvida nenhuma. Quando ele deixou o cargo de primeiro-ministro, um jornalista perguntou a ele: "o que aconteceu de mais importante no seu período como primeiro-ministro?", e ele respondeu, com muito bom-humor: "O que eu não deixei acontecer". Ele era capaz de não deixar acontecer certas coisas.