
* Doutor em Educação pela UFRGS
A apreensão de 48 obras de arte na nona fase da Operação Lava-Jato entregues no último dia 12 ao Museu Oscar Niemeyer (MON) pela Polícia Federal (PF) deixa a comunidade artística e cultural de cabelos em pé. Apreendido no Rio de Janeiro e com valor estimado em R$ 10 milhões, o acervo tem obras de artistas renomados como Amílcar de Castro, Salvador Dalí, Vik Muniz e Di Cavalcanti, entre outros. Repete-se o que já está virando rotina nas páginas policiais: o uso de obras artísticas para lavagem de dinheiro.
Dinheiro complica tudo na arte contemporânea. Ao invés de olhar uma obra numa exposição, você vê o seu preço. Depois que foi vendida, em 2007, a pintura White Center, de Mark Rothko por 71,7 milhões de dólares, seguiram-se aplausos não pela qualidade da obra, mas porque mais um novo recorde havia sido atingido. Don Thompson, em O Tubarão de 12 Milhões de Dólares: a Curiosa Economia da Arte Contemporânea (BEI, 2012), afirma que o comércio transformou o preço em valor e que todos são culpados pela entrada da arte como objeto no mundo do crime: curadores, historiadores da arte, comerciantes e diretores de museus. Todos se impressionam com os valores de obras e passam a falar dos artistas. Até o público vai a exposições só para ver se valem a pena. Diz Thompson: "A história da arte contemporânea seria diferente se os resultados dos leilões não fossem divulgados, se não houvesse nenhuma notícia sobre um Klimt vendido a 135 milhões de dólares ou sobre Lullaby Spring, de Hirst, a 9,7 milhões de libras"(página 261).
Uma oportunidade importante para resolver este problema foi dada pelo Decreto 8.124, que regulamentou as leis que criaram o Estatuto dos Museus e o Ibram. O decreto criou a possiblidade de que obras de arte sejam declaradas de interesse público e que, uma vez assim, o Estado assuma obrigações para com a obra que vão desde a sua conservação ao direito de aquisição em primeiro lugar, no caso de seu proprietário particular ter interesse em vender. A crítica da comunidade artística foi imediata. Teixeira Coelho, curador do Museu de Arte de São Paulo, em artigo na Folha de São Paulo em 10 de abril do ano passado, criticou o fato de o legislador desejar "legislar sobre o que não é legislável". Como curador, critica a flutuação da legislação, mas o problema é que são justamente os curadores os responsáveis por uma visão incerta e flutuante da arte, quando afirmam que o que hoje pode ser objeto de museu, amanhã pode não ser. As obras de arte consagram-se como atemporais: por que haveria de ser diferente com a arte contemporânea? Dizer que a arte contemporânea tem valor "por enquanto" reduz o seu lugar na História da Arte.
Com o uso de obras de arte para lavagem de dinheiro, o problema do poder público deixa de ser evitar que a arte digna de importância deixe o país e passa a ser a proteção das obras de valor artístico. São necessários procedimentos rigorosos para que obras de arte não sirvam aos especuladores de plantão e a criminosos. O Estado tem a obrigação de proteger as obras de arte porque elas não são como um carro - que, uma vez pago seus impostos, o proprietário está livre para fazer o que der e vier. A arte produzida em nosso país tem um valor agregado incomensurável para a cultura nacional e por isso o poder público tem o direito de decretar quando uma obra de arte é de interesse público e ressarcir seu proprietário dos custos. No mínimo, a lei deve prever que coleções particulares devem ter, em algum momento, a obrigação de serem expostas ao público. Se isso acontecer, claro, inúmeras novas questões práticas se colocam: trata-se de um empréstimo compulsório? Por quanto tempo? Que museu deve receber? Quer dizer, não se trata só de declarar de interesse público uma obra de arte, mas de contribuir para que ela circule e seja conhecida pela população.
As obras de arte têm servido para lavagem de dinheiro por criminosos porque o mercado de arte não é regulado.
O debate sobre regulamentação é pertinente ao sistema das artes do Rio Grande do Sul neste exato momento. Com a proximidade da 10ª Bienal do Mercosul, um potencial de obras e autores serão lançados ao mercado da arte. Não seria a Bienal do Mercosul um laboratório, um primeiro campo para a aplicação do Decreto 8.124 em nosso Estado? Que obras nacionais relevantes para a nossa cultura a Bienal apontará que merecem ser declaradas de interesse público? Quem as declarará? A lei diz que qualquer um pode solicitar declaração de interesse público para uma obra, mas o pedido deverá passar pelo Comitê Técnico e pelo Conselho Consultivo do Ibram para ser homologado pelo ministro da Cultura. Mas o que a lei prevê e que resgata as obras de servirem a lavagem de dinheiro é a obrigação que coloca ao proprietário: se este tiver uma obra declarada de interesse público e quiser vendê-la, deverá informar ao Ibram e conceder ao museu que o instituto indicar o direito de comprá-la nas mesmas condições da proposta recebida. O problema é que o critério de escolha permanece oculto na legislação.
Frente a um Estado que sequer tem recursos para a saúde, sugerir que tenha recursos para aquisição de obras de arte é uma fantasia. Será? Ora, não se trata de opção, o Estado deve ser responsabilizado pela defesa de obras de arte de interesse público. A conceituação do que seja obra de arte de interesse público já é polêmica, e a discussão faz parte do processo. Mas ainda há problemas, como afirma José Olimpio Pereira, presidente do Conselho da Pinacoteca de São Paulo: "O decreto detalha esse procedimento de forma adequada na venda via leilão, mas é vago no caso de uma venda privada".
O caso da Lava-Jato coloca o sistema das artes diante de um novo momento: ou se passa a usar a nova legislação para proteger as obras de arte de crimes ou assumimos que não temos condições de protegê-las. Os museus, é claro, deverão ser providos de recursos, e os orçamentos das secretarias de Cultura, ampliado, contra toda a história de investimento do Estado no setor.
Xavier Greffe, em Arte e Mercado (Iluminuras, 2013), assinala o quanto o mercado da arte contemporânea ilustra, ao mesmo tempo, a ambiguidade do conceito de mercado de arte e o destino que relega aos artistas: "Não porque os que serão reconhecidos não tenham talento, mas antes, porque a seleção dos vencedores (como a dos excluídos) torna-se completamente aleatória, o que vai contra todos os atributos reconhecidos ao mercado e ao mecanismo dos preços" (página 170). Entre as três bases que apresenta para a legitimação da arte, destaco uma: a legitimação pelo social, a arte "boa para todos".
A questão de fundo é que a arte deixe de se legitimar pela economia (quanto vale?) e passe a se legitimar pelo social, isto é, pelo que o autor denomina de " valores extrínsecos à arte", os valores educacionais e sociais que promove. Esta abordagem oferece um bom critério para determinar o valor público de uma obra de arte, a sua capacidade de criar vínculos públicos e fomentar a educação. Seria este o critério ausente da legislação? É preciso iniciar a discussão dos critérios e valores públicos para justificar sua declaração de importância - pública. E o principal não deveria ser o de que tal obra de arte serve de alavanca da formação do capital social?
O silêncio dos artistas sobre estas questões é pertubador, é o sintoma de que as coisas não andam muito bem no sistema das artes. O combate ao crime que se vale de obras de arte passa pela maior interferência e regulação do Estado, aplicação do Estatuto dos Museus e pelo debate necessário para a construção de políticas públicas para as artes.