Nestes dias em que só se fala (com apreciação ou inveja) dos glúteos per-fei-tos da atriz Paolla Oliveira na minissérie Felizes para Sempre?, na coragem da adolescente gordinha que desafiou os padrões ao desfilar no concurso Garota Verão em Canguçu e na notícia venenosa que enumerava imperfeições no corpo da apresentadora global Fernanda Gentil, o caderno PrOA revisita a história para refletir sobre nosso padrão de beleza. Depois da libertação dos corpos da repressão sexual, a ditadura estética parece ter inventado um novo tipo de prisão.
Lá pelas esquinas do século 19, o escritor José de Alencar andava preocupado com os artifícios empregados pelas mulheres na ânsia de ficarem mais belas. Temendo os "postiços de todas as qualidades" que faziam sucesso na Capital do Império, eternizou suas aflições por escrito:
"Imagine a posição desgraçada de um homem, que, tendo-se casado, leva para casa uma mulher toda falsificada, e que de repente, em vez de um corpinho elegante e mimoso, e de um rostinho encantador, apresenta-lhe o desagradável aspecto de um cabide de vestidos, onde toda a casta de falsificadores pendurou um produto de sua indústria. Quando chegar o momento da decomposição deste todo mecânico - quando a cabeleira, o olho de vidro, os dentes de porcelana, o peito de algodão, as anquinhas se forem arrumando sobre o toilette - quem poderá avaliar a tristíssima posição dessa infeliz vítima dos progressos da indústria humana?", criticava Alencar em um trecho de sua crônica, reproduzido pela historiadora Denise Bernuzzi de SantAnna no livro História da Beleza no Brasil (Contexto, 2014).
Não é de hoje, portanto, que as preocupações excessivas com a aparência - e os esforços a todo custo para retocá-la - provocam discussão. A diferença, como mostra Denise em sua obra, é que aqueles embelezadores comprados no tempo de Alencar permaneciam na superfície dos corpos, podendo ser retirados na hora de dormir. Com o tempo, foram para o armário as anquinhas e o espartilho. Entraram em cena o silicone para turbinar os seios, o hidrogel injetado que quase matou a apresentadora Andressa Urach e até a retirada de costelas para afinar cinturas. No caminho, o Brasil ultrapassou os Estados Unidos em 2013 e se tornou líder mundial em cirurgias plásticas, com 1,49 milhão de operações no ano, quase 13% do total mundial, segundo dados da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética.
- Antes se podia fingir, era uma beleza provisória que as pessoas colocavam. Hoje isso não basta, é como se não houvesse diferença entre ser e parecer, e a exigência da excelência física não tem fim - compara Denise, que é professora da PUC-SP.
Se, por um lado, os novos recursos garantiram maior liberdade a homens e mulheres para modelar o próprio corpo, tirando-os da condição de reféns da natureza, por outro criaram uma nova gaiola. O corpo passou a ser pesado, medido, vigiado. As balanças começaram a ser fabricadas no Brasil a partir de 1960, popularizando o hábito de se pesar entre homens e mulheres - ato até então restrito a episódios eventuais, como consultas médicas. As medidas de cada pessoa, que antes eram segredo de alfaiate, passaram a ser identificadas em tamanhos padronizados nas lojas: você é 38 ou 40, 46 ou 48?
- Aí a identidade do corpo passou a ter um número. O corpo virou um experimento, temos de adestrá-lo. É como se o corpo fosse uma empresa. A pessoa tem que administrar o superávit, o déficit - analisa a historiadora.
Chegamos a uma época em que não basta cuidar do próprio corpo. É preciso ser magro. Sarado. Tanquinho. Renunciar a calorias extras (comer sobremesa? deusolivre!). E, claro, ainda patrulhar o corpo do vizinho. Um caso extremo foi o da apresentadora do Globo Esporte Fernanda Gentil, fotografada na praia e alvo de uma "notícia" no site R7 denunciando que a "musa da Copa" teria um corpo "muito diferente" do que imaginavam, apresentando "gordurinhas", "celulite" e "bumbum reto". Depois da publicação, a apresentadora divulgou que estava grávida de dois meses, o que motivou um pedido de desculpas do site e a retirada do conteúdo do ar. Mas e se ela não estivesse grávida? As críticas seriam justificáveis?
Coordenadora do Núcleo de Doenças da Beleza da PUC-Rio, autora do livro O Intolerável Peso da Feiura (Editora PUCRio/Garamond, 2006), Joana Novaes observa que a gordura virou uma espécie de transgressão contemporânea. Não que a cobrança pela beleza tenha necessariamente aumentado, mas teria se tornado mais exposta e disseminada, com a replicação instantânea de selfies, belfies - whatever. Nosso olhar intolerante e discriminatório teria se desacostumado a enxergar os excessos da vida real, de tanto contemplar nas revistas os corpos esculpidos com photoshop.
Segundo Joana, uma das origens dessa necessidade de controle social dos corpos estaria na medicina higienista, que difundiu uma série de hábitos de limpeza e organização para conter a disseminação de doenças. Se, na origem, o foco era combater o avanço de pestes e chagas, aos poucos essas práticas de regulação e controle reforçaram a associação entre beleza e higiene. Assim, quem engorda e "transgride" nos cuidados com o próprio corpo passou a ser visto socialmente não apenas como "preguiçoso" e "desleixado", o que já seria questionável, mas como "sujo", "doente", "marginal". Por isso, pessoas que escapam ao padrão estético estabelecido acabam excluídas: são vistas como ameaça.
- Esse poder se mantém pelo controle diário exercido pelos seus pares, que faz com que isso seja incorporado com uma eficiência sem precedentes. Toda cultura tem seus mártires, seus contos de fadas. Na nossa sociedade imagética ninguém tem privacidade, qualquer um que destoa é pego para Cristo - analisa Joana.
Por exigir tanta rigidez, a pesquisadora diz que o persistente culto ao corpo também pode ser lido como um calvinismo revisitado. Assim como a doutrina religiosa, a da beleza difunde a ideia de que o trabalho dignifica, de que é preciso seguir um protocolo de privações e sacrifícios para atingir uma conquista superior. Para os súditos da beleza, o prêmio não seria o céu, mas a própria carne: quem tem disciplina suficiente para renunciar aos prazeres terrenos da comida e do ócio conquista como prêmio o direito de exibir seus corpos sarados. Parabéns, você que se sacrificou muito na academia já pode usar biquíni na praia sem ser insultado nas redes sociais!
Diversidade na passarela
E quem destoa do padrão, deveria se esconder? Com uma atitude tão simples como corajosa, uma adolescente de Canguçu mostrou que não. Aos 14 anos, Vanessa Braga exibiu seus quilinhos extras desfilando de biquíni no concurso Garota Verão. Não escapou de comentários maldosos na internet, mas recebeu muito mais apoio do que críticas. Com a atitude, incitou discussões sobre a ditadura da magreza Brasil afora. E serviu de inspiração para repensar padrões. Para a psicóloga Rachel Moreno, autora do livro A Beleza Impossível (Ágora, 2008), o exemplo de Vanessa representa uma afirmação de diversidade importante, em um país que tem 51% da população com sobrepeso, segundo dados do Ministério da Saúde. Mas Rachel também propõe uma reflexão: o que significa o fato dessa afirmação ser buscada em uma passarela, como se ainda dependesse do aval de um júri? Se todos os corpos fossem ser valorizados em sua diferença, os concursos de beleza fariam sentido?
Seja como for, Rachel reconhece que movimentos contrários são sempre importantes, impulsionando ondas de resistência. De atos individuais como o de Vanessa, aos grupos de discussão pela internet, passando pelas campanhas pela "valorização da beleza real", de marcas como a Dove, os padrões hoje já são questionados. Depois do filme O Diabo Veste Prada, por exemplo, quando a atriz Meryl Streep exibia cabelos brancos, Rachel lembra que cresceu o número de mulheres maduras que deixaram de pintar os cabelos.
- Quanto mais pessoas questionarem o padrão, mais outras pessoas se sentirão encorajadas a fazer o mesmo. Mães e filhas precisam parar para conversar, a escola precisa discutir esses padrões. Pesquisas mostram que mulheres satisfeitas com sua aparência não são as mais magras, mas as que se sentem realizadas em algum aspecto da vida, como ser mãe ou ter uma carreira - defende Rachel.
O problema é que os estímulos são ambíguos. Ao mesmo tempo em que a propaganda estimula o desejo de comer-comer! (nutrido com Coca-Cola e fast-foods, sempre ao lado de consumidores magros e felizes), promete maravilhas para emagrecer-emagrecer! (você quer, você pode!). Para Flavia Felippe, autora de tese de doutorado sobre o peso social da obesidade, transformada no livro Obesidade Zero: a Cultura do Comer na Sociedade do Consumo (Sulina, 2003), uma das contradições da obsessão pelos corpos perfeitos é que a questão é colocada como se fosse uma escolha individual, cuidar do próprio corpo ou não. Por outro lado, somos bombardeados de todos os lados por estímulos de consumo, em um cotidiano gerador de ansiedades, estresses e doenças sociais, que também induz a compulsões pela comida.
- A representação social do comer parece centrar-se na individualização e culpabilização dos obesos, independentemente das causas genéticas, emocionais e, muito menos, sociais. Isso ajuda a reforçar preconceitos e relações de dominação. Nossa sociedade é lipófoba, odeia a gordura, e faz sempre uma associação entre felicidade e figuras esbeltas - analisa Flavia.
Na ardor para atingir o padrão das revistas, cresce o número de pessoas infelizes com a própria imagem (homens também, vale lembrar), alimentando o consumo de produtos e recursos da indústria da beleza. Mais do que uma gordurinha aqui ou ali, nosso espelho revela angústias profundas de uma sociedade que libertou os corpos da repressão sexual para aprisioná-los na ditadura estética. Mas o próprio aprisionamento também encontra sinais de saturação. Espelho, espelho meu, existe alguém mais...
Aff, que cansaço.